Ensino antirracista na Educação Básica
Ensino antirracista na Educação Básica Da formação de professores às práticas escolares
Organizador
Thiago Henrique Mota
Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/ Arte de Capa: INTO ACTION - https://tenor.com/official/intoaction
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) MOTA, Thiago Henrique (Org.) Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares [recurso eletrônico] / Thiago Henrique Mota (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021. 304 p.
ISBN - 978-65-5917-182-8 DOI - 10.22350/9786559171828 Disponível em: http://www.editorafi.org
1. Ensino antirracista; 2. Educação Básica; 3. Sociedade; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título. CDD: 370 Índices para catálogo sistemático: 1. Educação 370
Dedicado a João Alberto Silveira Freitas, homem negro espancado e assassinado no supermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS), por seguranças do estabelecimento, no dia 19 de novembro de 2020. As vésperas do Dia da Consciência Negra, o racismo matou mais um pai de família no Brasil.
“Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita é uma civilização decadente. Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma civilização enferma. Uma civilização que trapaceia com os seus princípios é uma civilização moribunda.” Aimé Cesaire, Discurso sobre o colonialismo, 1955.
Sumário 1
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Ensino antirracista na educação básica: uma introdução Thiago Henrique Mota
Parte I Formação inicial e continuada de professores 2
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História da África e História afro-brasileira no Ensino Superior: entre des-conhecer, conhecer e reconhecer-se Thiago Henrique Mota
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Estudos africanos e afro-brasileiros: possibilidades de intervenção pedagógica Marcelo Pagliosa Carvalho
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71
Um relato de experiência e reflexão: contribuições do estágio supervisionado para uma (re)educação para as relações étnico-raciais Raquel dos Santos Sousa Lima Yassen Fideles Ubl
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Guerra Fria Global: uma discussão para a descolonização do ensino Raissa Brescia dos Reis Taciana Almeida Garrido de Resende
6
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Saravá, Dona Clementina! Reflexões sobre a prática da educação para as relações étnico-raciais na pós-graduação lato sensu Letícia Bezerra de Lima Patrício Pereira Alves de Sousa
Parte II Práticas escolares: ensino fundamental e médio 7
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O protagonismo de Sidi: mulher, teatro e ensino de história da Nigéria Luiza Nascimento dos Reis
8
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Reconhecendo as grafias negras através da leitura da paisagem Janete Regina de Oliveira
9
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Sobre saberes e fazeres: caminhos para a abordagem do dia 13 de maio em sala de aula Luana Tolentino Rogéria C. Alves
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217
Eleições, raça e cidadania: uma proposta de educação para as relações étnico-raciais no ensino de história em Minas Gerais Ana Paula Ribeiro Freitas
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244
História da África, Terceiro Mundo e Guerra Fria: uma proposta didática para o Ensino Médio Taciana Almeida Garrido de Resende
Parte III Diagnóstico local: Viçosa (MG) 12
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O cotidiano e as práticas de educação das relações étnico-raciais em escolas públicas de Ensino Fundamental II em Viçosa, Minas Gerais Lara de Godoi Soares Francismara Delfina Marinho da Costa Maria Raquel Morais Fernandes Maria Tereza Oliveira de Assis
1 Ensino antirracista na educação básica: uma introdução Thiago Henrique Mota 1
O estudo de história e cultura africana e afro-brasileira é uma determinação legal estabelecida pela Lei 10.639/2003. No entanto, tal reivindicação é pauta antiga de diversos movimentos negros no Brasil, datando desde pelo menos a década de 1970 (PEREIRA, 2011). A reavaliação do papel da população negra na construção social, cultural, econômica e política do Brasil tem sido apontada como uma demanda social que, mais do que reparar um apagamento histórico, possibilita uma reconciliação psicológica da nação (KALY, 2013). Isso significa que, no Brasil, o enraizamento da suposta democracia racial naturalizou estruturas sociais racializadas e hierarquizadas, nas quais sujeitos brancos e negros têm visões descompensadas da realidade baseadas em estruturas excludentes e em privilégios transmitidos através das gerações. Por um lado, o sentimento de superioridade autoatribuído por parte da população branca, que reivindica seu direito quase natural a melhores postos de trabalho e remuneração advém da compreensão de privilégios sociais como condições naturais: por serem naturalmente mais capazes. Por outro lado, a exclusão social da população negra, relegada a trabalhos de menor prestígio, menor remuneração e piores condições de vida, tende a ser compreendida como
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Doutor em História Social pela Universidade Federal de Minas Gerais em cotutela com a Universidade de Lisboa. Professor de História da África no Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa e no Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania/UFV. Coordenador do grupo de pesquisa Observatórios Atlânticos (CNPq). Contato: [emailprotected].
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resultado natural da inferioridade atribuída aos sujeitos negros. Portanto, naturaliza-se uma condição histórica e social. Esta compreensão da sociedade a partir das condições de acesso à base material pautada na naturalização de um processo de desigualdade histórica constrói o conjunto de representações que brancos e negros fazem de si e do outro. Como um discurso que se origina na lente opaca do racismo, tal entendimento desempenha uma função performativa ao dar forma à realidade, reproduzi-la e orientar a compreensão do mundo legitimando esse ponto de vista distorcido. Para enfrentar este problema, a mudança no regime de representações do mundo é um passo importante para transformar a materialidade da existência. Esse passo, no entanto, somente será completo quando as condições materiais de vida entre brancos e negros no Brasil deixarem de ser caracterizadas pela desigualdade de acesso e oportunidades e passarem, elas próprias, a orientar outro regime de representações baseado na equidade. Nesse sentido, é fundamental que políticas sociais (como o Estatuto da Igualdade Racial) e educacionais (como as cotas sociorraciais para ingresso em instituições públicas de ensino superior) caminhem lado a lado com políticas curriculares, como a determinada pela lei 10.639/2003, que demanda a inclusão das experiências, contribuições e perspectivas da população negra no quadro de conteúdos ministrados no Ensino Fundamental e Médio. Numa sociedade sustentada pelo trabalho escravo negro por séculos e, desde seu fim, pouco afeita à extensão da cidadania à população negra, tal mudança de perspectivas tem papel revolucionário. O objetivo deste livro, ao oferecer metodologias de trabalho para uma educação antirracista desde a formação de professores às práticas escolares na educação básica, é modificar as condições materiais de existência da população negra brasileira. Nosso trabalho busca atuar na luta pela redução das desigualdades raciais no país através da garantia de acesso da
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população negra aos direitos universais de uma sociedade cidadã: serviços básicos e de qualidade, como saúde, transporte e educação; plenas condições de alimentação, moradia, emprego e progresso profissional; igualdade de oportunidades profissionais, econômicas e políticas; respeito às culturas, religiões e a toda diversidade sociocultural vivenciada na sociedade brasileira. Entendemos que a busca por essas garantias perpassa a produção de outro olhar sobre os corpos, as ideias e as expressões negras, que engendra novas práticas, educando para as relações étnico-raciais e tornando possíveis vivências mais equânimes entre brancos e negros no Brasil. Partimos do princípio de que o ensino antirracista pauta-se na educação para a liberdade e, sobretudo, na educação para a justiça e a felicidade. Neste sentido, a proposta de ensino de História da África e de História Afro-brasileira não se caracteriza por um acréscimo de conteúdo nas aulas de história (GOMES, 2012). Antes, trata-se de uma nova forma de pensar os temas que constituem toda a educação básica, nas aulas de Artes, Biologia, Filosofia, Física, Geografia, História, Língua estrangeira, Língua portuguesa, Literatura, Matemática, Química e Sociologia. É preciso garantir o conhecimento público sobre cientistas e artistas negros, filosofias africanas e afro-diaspóricas, línguas africanas e contribuições africanas ao português brasileiro, geografia deste continente e da diáspora, técnicas, astronomia, metalurgia, farmacopeia africanas como temas das aulas de física, química e biologia... As possibilidades de expansão e descolonização do currículo para torná-lo mais inclusivo são infinitas e pautam-se na construção de relações sadias entre sujeitos, conhecimentos e pertencimento étnico-racial (FELINTO, 2012). Este é o espírito deste livro: apresentar propostas para inserção de temas africanos e afro-brasileiros na formação de professores para a educação básica e nas práticas escolares nos ensinos fundamental e médio, com foco nas ciências humanas.
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Assim, esta obra busca participar da transformação em curso nos currículos da educação básica. Conforme argumentam Angela Figueiredo e Ramón Grosfoguel (2009), o racismo vivido no Brasil decorre da estruturação de uma sociedade marcada pelo regime de colonialidade. As independências políticas vividas na América Latina foram marcadas por processos de colonização doméstica: elites eurodescendentes deram continuidade às estruturas de dominação criadas pelos estados coloniais europeus, aplicadas contra a população majoritária residente nos territórios que herdaram/conquistaram: negros e indígenas. No Brasil, a continuidade colonial no pós-independência é flagrante, uma vez que o governante do jovem país era o mesmo herdeiro do trono português e as elites no poder eram as mesmas de outrora. No ensino básico, o marco da nacionalidade segue sendo a colonização portuguesa como elemento de civilização. Aquilo a que se atribui a condição de História do Brasil foi, na verdade, a seleção de uma narrativa conduzida para legitimar os interesses das elites eurodescendentes do país, as elites brancas. Esse quadro homogêneo, cuidado e retocado com esmero pelas políticas educacionais e curriculares ao longo dos séculos, atualmente, tem apresentado rachaduras impostas pelas lutas populares que almejam o reconhecimento de outros povos e culturas que, literalmente, construíram o Brasil. Neste país, a colonialidade posterior à emancipação regeu as estruturas sociais, marcadas por poderes instituídos ocupados com a garantia do controle da elite branca sobre a massa da população branca pobre, indígena e negra. Apesar de, no âmbito das relações de classe, a população branca pobre estar despossuída dos mecanismos de poder controlados por elites também brancas, o racismo estrutural que orienta as relações entre pessoas racialmente definidas em função da cor de sua pele garantiu a brancos pobres direitos que, aos negros, foram interditos pela lei. Neste sentido, cabe lembrar que o próprio estado brasileiro legislou a favor da
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proibição do acesso da população negra escrava à educação formal: o decreto 1331/1854 proibia que as escolas públicas fossem acessadas por escravos e estabeleceu constrangimentos que atingiam particularmente a população negra livre. A leitura do documento sugere que dificilmente haveria ampla presença da população negra nas escolas públicas do período, dadas as suas restrições e baixa extensão da rede de educação. Eis, pois, um dos pilares coloniais que reproduziu a colonialidade em suas relações, causando impactos duradouros na sociedade nacional. Desde aquele momento, a educação tem sido um dos eixos estruturantes da manutenção do racismo no país, particularmente no que toca ao currículo. O currículo do ensino de História é racializado em grande parte: trata-se da construção da nação e das contribuições da população eurodescendente na cultura, na economia, na política, nas artes, na organização social. No que tange à História Geral, o eixo norteador da seleção de temas tem sido a história europeia. A presença negra ora aparece exclusivamente na condição submissa, ora na ambígua condição de resistente: à escravidão ou à modernização? A História da África, em livros didáticos, muitas vezes é reduzida à presença europeia no continente. Mais recentemente, alguns livros têm trazido outras narrativas, com enfoque no reino do Congo ou nos Estados islâmicos da África Ocidental, no século XIX. No entanto, há muito a percorrer. Nesse caminho, concordamos com Nilma Lino Gomes (2012) ao afirmar que a inserção da história e cultura afro-brasileira nos currículos da Educação Básica significa, antes de tudo, uma revisão do currículo. Não se trata se acrescentar um tema no programa: antes é preciso rever todo o discurso histórico. É preciso pensar a contribuição de sujeitos negros na constituição do país, reconhecer o trabalho assalariado e as ideias trabalhistas de trabalhadores negros, em detrimento do foco no trabalho escravo e da exclusividade da história das ideias atribuídas aos imigrantes
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europeus (NASCIMENTO, 2016), reconhecer a estética negra do barroco de Aleijadinho ou das pinturas de Heitor dos Prazeres (ARAÚJO, 2010), a literatura de Carolina de Jesus (2014) e Conceição Evaristo (2003), a crítica social de Abdias do Nascimento (2016), o cinema de Viviane Ferreira (2014). É preciso romper com a pedagogia do silêncio sobre relações étnico-raciais que impera na educação, apontar a cor dos corpos, reconhecer o corpo negro como lugar de ideias, expressão e criação. Este livro, portanto, se ampara numa política curricular fundada na dimensão histórica que busca combater o racismo e a discriminação que atingem particularmente os negros. Busca garantir-lhes o direito de se reconhecerem na cultura nacional e de se expressarem, de forma individual ou coletiva (SILVA, 2004). Ao focar a educação para as relações étnicoraciais, buscamos destacar a construção social dos conceitos de raça e etnia. Raça não é entendida, aqui, como um conceito biológico: antes, é a perspectiva sociológica que nos interessa, o fato de sermos todos percebidos pela sociedade de forma racializada, brancos, indígenas ou negros. Embora o conceito biológico de raça não exista para raças humanas, aos traços fenotípicos da população negra têm-se atribuído, ao longo do tempo, valores irreconciliáveis com a ideia de modernidade: violento, volúvel, menos inteligente, dado ao trabalho pesado. Aos corpos brancos, as características fenotípicas que os definem, por seu turno, têm sido valorizadas de forma positiva: sensível, inteligente, complexo, asseado. Diante disso, fica evidente que, na dinâmica social, pessoas brancas e negras continuam a ser organizadas em categorias raciais, que correlacionam aspectos físicos, morais, psicológicos e intelectuais estereotipados e desiguais. Romper com estes estereótipos reprodutores de violências é fundamental e, para isso, é preciso valorizar o termo “étnico”, o seja, o reconhecimento das culturas de matriz africana e das experiências negras
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propriamente brasileiras, bem como seus valores, estéticas, reivindicações de descendência (MUNANGA, 2004). No âmbito das relações raciais vividas no Brasil, é útil destacar: nenhuma pessoa branca, hoje, é responsável pelos horrores do tráfico de pessoas negras, a escravização delas e as condições desumanas a que foram submetidas, no passado. Entretanto, todas as pessoas brancas, hoje, são herdeiras de privilégios atribuídos aos brancos e construídos desde a escravidão dos negros no Brasil, seja devido à manutenção de heranças dentro das famílias brancas, seja por não serem alvo dos preconceitos raciais que inibiram e ainda inibem o progresso escolar e profissional de pessoas negras. Assim, ainda que ninguém, hoje, seja responsável pelo erguimento deste sistema, somos todos responsáveis por combatê-lo, uma vez que usufruir das desigualdades estabelecidas continua sendo um privilégio branco e imoral. Para isso, o estabelecimento de uma educação antirracista deve envolver toda a sociedade, não apenas os negros. Uma profunda reflexão sobre a educação para as relações étnico-raciais leva-nos a concluir que o tema é urgente não apenas para o público escolar negro. É fundamental aos estudantes brancos, para que sejam capazes de reconhecer a diversidade de matrizes que compõem a cultura nacional, tenham elementos para compreender culturas que podem eventualmente não conhecer e reconhecer a necessidade de se mobilizar pela igualdade de direitos, compreendendo-a como um produto benéfico para todos. É preciso que estudantes brancos saibam identificar claramente o racismo, para não mais praticá-lo. Uma sociedade social e racialmente mais justa é menos violenta, garante melhores condições de vida a todos, melhora a produtividade da economia nacional e contribui, inclusive, para o desenvolvimento do PIB. Como? Através da incorporação de pessoas apartadas do mercado de trabalho, do financiamento de projetos de pequenos empreendedores e pequenos agricultores negros, do reconhecimento das
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habilidades de profissionais negros e oferta de condições para seu desenvolvimento pessoal e intelectual, que podem repercutir em soluções para problemas da sociedade, da economia e da indústria brasileiras. O combate ao racismo só traz benefícios (BEDÊ, 2015). Engajado nesta luta antirracista, este livro está organizado em três partes. A primeira, “Formação inicial e continuada de professores”, é composta por 05 capítulos que apresentam diagnósticos, sugestões e estratégias para formação docente. A segunda, “Práticas escolares: ensino fundamental e médio” busca oferecer aos professores da educação básica materiais adequados ao trabalho com a história africana e afro-brasileira em diálogo com o campo da educação para as relações étnico-raciais. Já a terceira traz um diagnóstico da educação básica na rede municipal de educação da cidade de Viçosa, em Minas Gerais, para indicar reflexões sobre a caracterização do campo de estudos africanos e afro-brasileiros hoje, de forma concreta. Nossa proposta é oferecer alternativas aos professores para trabalhar com educação das relações étnico-raciais de forma a favorecer o entendimento dos estudantes acerca das complexas construções sociais produzidas no Brasil, ao longo do tempo, percebendo a centralidade do conceito de raça em suas estruturações (ALBERTI, 2013). A primeira parte é composta por 05 contribuições. Abrindo a seção, no primeiro capítulo, intitulado “História da África e História afro-brasileira no Ensino Superior: entre des-conhecer, conhecer e reconhecer-se”, Thiago Mota analisa o ensino universitário na licenciatura e bacharelado em História, seus desafios e potenciais. Em seguida, Marcelo Pagliosa Carvalho compartilha as experiências pedagógicas desenvolvidas na Universidade Federal do Maranhão, no curso de licenciatura em Estudos Africanos, pioneiro no Brasil. O terceiro capítulo, de autoria de Raquel dos Santos Sousa Lima e Yassen Fideles Ubl, trata da profícua interlocução entre formação docente e educação básica através de uma experiência de
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estágio supervisionado, do curso de licenciatura, centrada no ensino de História da África, no ensino médio. A quarta contribuição foi feita por Raissa Brescia dos Reis e Taciana Almeida Garrido de Resende e caracteriza-se como uma importante virada conceitual necessária à formação docente e discente no ensino de História: e se a Guerra Fria for ensinada a partir de sua dimensão global? Fechando a primeira parte do livro, o capítulo de Letícia Bezerra de Lima e Patrício Pereira Alves de Sousa compartilha estratégias e resultados das ações pedagógicas desenvolvidas numa pós-graduação lato sensu sobre relações étnico-raciais. A segunda parte é dedicada à apresentação de experiências docentes que podem ser adaptadas a contextos específicos e aplicadas no ensino de temáticas africanas e afro-brasileiras na educação básica. A partir da leitura dramática de uma peça de teatro nigeriana, O Leão e a Joia, de Wole Soyinka, Luiza Nascimento dos Reis apresenta uma possibilidade lúdica de ensino de História da África marcada pelas reflexões surgidas durante a preparação e realização de um projeto cultural. Em seguida, Janete Regina de Oliveira demonstra o potencial de um trabalho prático nas aulas de geografia, através da incorporação da dimensão racial no reconhecimento de paisagens culturas em contextos urbanos e rurais. Luana Tolentino e Rogéria Alves discutem meios de explorar o protagonismo negro nas comemorações do dia 13 de maio, trazendo reflexões sobre a natureza do ensino de história no Brasil amparadas na percepção do racismo no ambiente escolar, prolongado por séculos. O capítulo seguinte traz uma proposta de atividade para sala de aula no que toca ao conteúdo de história de Minas Gerais e, acrescento eu, história do período imperial brasileiro. Ana Paula Ribeiro Freitas oferece uma metodologia de uso de documentos em sala de aula para refletir sobre as relações entre eleições, raça e cidadania, fundamental à compreensão das relações de poder nas sociedades do interior brasileiro, no século XIX.
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Finalizando a segunda parte, temos outra contribuição de Taciana Resende, desta vez uma atividade prática. A partir das propostas teóricas do capítulo “Guerra Fria Global: uma discussão para a descolonização do ensino”, na parte 01, a autora destrincha uma importante metodologia para abordagem do tema na educação básica, com uma aula marcada pelo uso de documentos e relações entre poderes do sul global durante a Guerra Fria. Essa segunda parte do livro, como se nota, é dedicada ao trabalho em sala de aula e será de grande valia aos professores! A terceira seção traz uma contribuição das estudantes de graduação em História, Lara Godoi Soares e Maria Raquel Morais Fernandes, e em Pedagogia, Francismara Delfina Marinho da Costa e Maria Tereza Oliveira de Assis. As autoras elaboraram um diagnóstico da educação para as relações étnico-raciais em escolas municipais de Viçosa (MG). Este capítulo, que fecha o livro, é, em verdade, a origem de todo o empreendimento. Trata-se do resultado imediato de um projeto de extensão financiado pelo Programa Institucional de Extensão Universitária da Universidade Federal de Viçosa (PIBEX/UFV), ao qual agradeço pelo apoio. O projeto propunha, entre outras iniciativas, convidar professores dedicados a pesquisar temas africanos e afro-brasileiros para apresentarem possibilidades de abordagem de suas pesquisas junto à educação básica. Várias das intervenções aqui apresentadas resultam das conferências ministradas em Viçosa, para professores da educação básica, do ensino superior e para professores em formação inicial nos cursos de licenciatura. Portanto, este livro, cuja finalização somente foi possível com o apoio do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCH/UFV), ao qual também remeto agradecimentos, é em si um documento que reforça a importância da extensão como pilar da universidade pública e seu potencial para transformar a sociedade através da educação. Esse é o grande sonho de todos que aqui publicam.
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Referências ALBERTI, Verena. Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira. In. PEREIRA, Amílcar Araújo; MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de história e culturas afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. ARAÚJO, Emanoel. A mão afrobrasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Museu Afro Brasil, 2010. BEDÊ, Marco Aurélio (coord.). Os donos de negócio no Brasil: análise por raça/cor (20032013). Brasília: SEBRAE, 2015. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003. FANNON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. FELINTO, Renata (org). Culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula: fazeres para professores, fazeres para alunos (religiosidade, musicalidade, identidade e artes visuais). Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. FERREIRA, Viviane. O dia de Jerusa. Curta metragem. São Paulo, 2014. FIGUEIREDO, Angela; GROSFOGUEL, Ramón. Racismo à brasileira ou racismo sem racista: colonialidade do poder e a negação do racismo no espaço universitário, Sociedade e Cultura, Goiânia, v.12, n.02, 2009. GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos, Currículos sem fronteiras, v.12, n. 01, 2012. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. KALY, Alain Pascal. O ensino da história da África no Brasil: o início de um processo de reconciliação psicológica de uma nação? In. PEREIRA, Amílcar Araújo; MONTEIRO,
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Ana Maria. Ensino de história e culturas afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia, Cadernos PENESB, Niterói, n. 5, 2004. NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016. NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuição à história social do trabalho no Brasil, Estudos Históricos, Rio de Janeiro,v.29, n.59, 2016. PEREIRA, Amílcar Araújo. A Lei 10.639/03 e o movimento negro: aspectos da luta pela “reavaliação do papel do negro na história do Brasil”, Cadernos de História, v.12, n.17, 2011. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves da. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno/DF, 2004.
Parte I Formação inicial e continuada de professores
2 História da África e História afro-brasileira no Ensino Superior: entre des-conhecer, conhecer e reconhecer-se Thiago Henrique Mota 1
Neste capítulo, busco refletir sobre o ensino de História da África e História Afro-brasileira a partir de minha experiência docente na graduação (licenciatura e bacharelado em História), através das disciplinas de História e Cultura Afro-brasileira (HIS 433), História da África I (HIS 450) e História da África II (HIS 470), ministradas entre os anos de 2018 e 2019. As questões que guiam a análise são: quais os impactos destes campos de estudos percebidos pelos estudantes em sua própria formação? Quais as lacunas existentes no conhecimento prévio? Quais suas maiores dificuldades? A análise será pautada por dois recursos: 1- reflexão subjetiva minha, enquanto professor ministrante das três disciplinas, sobre as estratégias de ensino adotadas e a resposta dos alunos, 2- análise de dados procedentes de um dos instrumentos de avaliação utilizados nos cursos: uma autoavaliação elaborada pelos estudantes, ao término de cada curso.2 Ao debater as ponderações apresentadas pelos estudantes concernentes ao impacto das disciplinas sobre eles, associadas à minha própria percepção do ensino e à trajetória dos estudos africanos no Brasil, aponto quais os 1
Doutor em História Social pela Universidade Federal de Minas Gerais em cotutela com a Universidade de Lisboa. Professor de História da África no Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa e no Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania/UFV. Coordenador do grupo de pesquisa Observatórios Atlânticos (CNPq). Contato: [emailprotected]. 2
Cada ficha de autoavaliação foi identificada através de um código formado por uma letra e um número. A letra indica a disciplina, respeitando a ordem de oferecimento de cada uma delas, entre 2018 e 2019. (A) indica História e Cultura Afro-brasileira; (B) História da África I e (C) História da África II. O número corresponde à classificação aleatória das fichas, com o objetivo de resguardar a identidade dos/das estudantes.
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desafios colocados pelas disciplinas de História da África e História Afrobrasileira aos professores do ensino superior, hoje. Em outras palavras, como nossos cursos atingem e formam nossos alunos? No que tange à autoavaliação, os estudantes foram orientados a se autoatribuir uma nota entre zero e dez (totalizando 10% da nota total do curso) e justificá-la, considerando seu comprometimento, realização prévia de leituras em relação às aulas, participação nas aulas, assiduidade e colaboração com o aprendizado coletivo. Todos foram informados de que não haveria qualquer julgamento por parte do professor quanto à nota indicada, que seria lançada no sistema tal qual estabelecessem. Por tratarse da última atividade, as demais já estavam concluídas. A autoavaliação buscou familiarizar os estudantes com a corresponsabilidade envolvida no sucesso do ensino-aprendizagem, sobretudo tendo em vista tratar-se de um curso de formação docente. Portanto, era esperado que os alunos refletissem sobre seu envolvimento nas disciplinas e, assim, avançassem sobre as dificuldades que percebessem em seu próprio aprendizado. Além disso, buscava feedback para aprimoramento de minha própria prática docente, recebendo críticas e sugestões e refletindo sobre elas. O resultado, no entanto, foi além do esperado: vários estudantes usaram o espaço para expressar-se sobre o papel das disciplinas em sua formação acadêmica, pessoal e cidadã. Se eu já havia percebido, ao longo dos cursos, que as disciplinas têm uma grande dimensão política para todos os alunos, e de autoconhecimento, principalmente para os estudantes negros, esta constatação foi ratificada pelas observações feitas por vários deles, na autoavaliação. A dimensão política é mais evidenciada na área de História da África, acompanhada pelo declarado desconhecimento do tema pelos alunos. Já o autoconhecimento – ligado a experiências prévias com racismo, reconhecer-se enquanto negro ou entender melhor sua própria
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vinculação religiosa – foram mais notados na área de História Afro-brasileira. Em geral, os estudantes iniciam o percurso de estudos confundindo as duas grandes áreas e projetando a história afro-brasileira na africana e vice-versa. Ao término das disciplinas – para aqueles que cursaram as três – o desenvolvimento é notável, bem como a capacidade de compreender as conexões entre os campos, destacando o fato de possuírem historicidades distintas. Para descrever e analisar esta trajetória, apontarei três momentos: o primeiro marcado pelo desconhecimento e pela necessidade de des-conhecer, de contextualizar o conhecimento prévio e seus estereótipos, avançando sobre ele; o momento de conhecer e as principais dificuldades que o caracterizam, para alunos e professor; e o terceiro estágio marcado pelo ato de reconhecer-se, como um dos contributos dos cursos expressos pelos estudantes. Des-conhecer: “uma disciplina nova e desacostumada”
Quando a Lei 10.639/2003 determinou o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica brasileira, muito pouco se produzia sobre história da África nas universidades do país. Afora centros pioneiros, como o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (1959), o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (1968) e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes (1973-2016), o campo de estudos não se encontrava institucionalizado (PEREIRA, 2008; REIS, 2010; SCHLICKMANN, 2015). Em janeiro de 2021, momento em que este artigo é concluído, o quadro é outro. Passados 18 anos da promulgação da lei, o Grupo de Trabalho em História da África da Associação Nacional de História (GT-África/ANPUH) conta, atualmente, com 124 membros registrados e em atuação em todas as regiões do país. Deste total, 30,6% é composto por professores adjuntos
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de universidades públicas, ou seja, professores em início de carreira. Em seguida, 19,4% são pesquisadores sem vínculo docente (a maior parte formada por estudantes de pós-graduação). 12,1% são professores associados de universidades públicas. Os professores titulares, posto mais alto da carreira docente no ensino superior público, são 5,6% do total. Os professores da rede privada correspondem a apenas 7,3%. O restante se divide entre atuação na educação básica pública e privada e nos postos iniciais não doutorados da carreira docente do ensino superior público (substituto, auxiliar e assistente).3 O fato de a maior parcela dos profissionais encontrar-se nos níveis de formação ou de professor adjunto (50%) tem uma clara indicação: é um campo de pesquisas jovem. A existência de poucos pesquisadores, até início dos anos 2000, acarretou a baixa produção acadêmica em estudos africanos, cujo impacto ainda é sentido na ponta do sistema educacional brasileiro: os alunos da educação básica conhecem pouco sobre história da África. Aqueles que escolhem cursar História no ensino superior seguem os demais, mas com uma vantagem. Embora conheçam pouco, terão oportunidades que aqueles de sua geração escolar dificilmente acessarão: o contato com os estudos africanos nas salas universitárias. Contudo, o escasso conhecimento prévio deste público coloca dificuldades adicionais aos professores de História da África. Ao passo que temas como História Moderna ou História do Brasil partem de um substrato mais ou menos comum sobre os quais professores e estudantes construirão novos conhecimentos coletivamente, na História da África essa base é ausente. Mais do que sua ausência, destacam-se os estereótipos em volta do tema, positivos ou negativos, que lhe atribuem uma aura de mito ou estatuto de rejeição.
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Dados inéditos do levantamento feito pela coordenação do GT-África, da qual sou integrante, em 2020.
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A maior parte dos estudantes possui imagens negativas sobre o continente africano, assim como a sociedade, em geral, resultante da maximização de epítetos como fome, violência, guerras e doenças declarados nos veículos midiáticos como imanências africanas. Outros, geralmente com maior grau de engajamento em movimentos sociais, principalmente em movimentos negros, imaginam uma África edênica: sociedades harmônicas, igualdade de gênero, tolerância religiosa e solidariedade social são as principais ideias que costumam trazer ao debate. É inevitável que uns e outros tenham suas expectativas frustradas em alguma medida. Por isso, o exercício de historicizar as culturas para compreender as sociedades africanas torna-se tarefa fundamental nas aulas de História da África. Isso pode parecer óbvio (e é!), mas o óbvio nem sempre é fácil. Perceber a transformação como um princípio do conhecimento histórico em sociedades que são pensadas a partir de suas próprias transformações, como as sociedades ocidentais, é mais fácil do que notar este atributo em sociedades que são constantemente pensadas, para o bem ou para o mal, fora da história. Isso causa surpresa nos estudantes: Como afirma uma aluna, “em muitos momentos, [fiquei] chocada” (B19). A quebra de expectativas é o primeiro aspecto dos cursos de História da África, marcado pelo des-conhecimento: o esforço para contextualizar as narrativas conhecidas, identificando suas origens intelectuais e seus compromissos políticos. Em seguida, parte-se para a construção de um novo conhecimento sobre o continente, pautado por chaves interpretativas que valorizem as perspectivas internas de sociedades africanas sobre si mesmas. Um conhecimento que não seja produto do eurocentrismo nem sua oposição simétrica: buscamos uma África autônoma. As discussões teóricas que abrem o curso indicam estes caminhos. O debate sobre o trabalho do filósofo moçambicano Severino Ngoenha traz reflexões importantes sobre a construção do campo dos estudos africanos ligado à
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dimensão da etnicidade, em detrimento da historicidade, como resultante do processo histórico de formação da disciplina História. O lado mais sombrio da História enquanto campo de conhecimento esconde justamente o uso racial que foi feito dela desde seu surgimento. Geralmente, se atribui à Antropologia o trabalho de justificar ideologicamente o colonialismo europeu na África, mantendo a História como imaculada narrativa. Contudo, como demonstra Ngoenha (2014), foi a concepção eurocêntrica da noção de História que expulsou as sociedades africanas de seus domínios, forjando o nascimento da Etnologia. O estudo da história da África, portanto, exige uma reflexão mais profunda sobre o próprio significado da História e sua origem política. Demanda avançar nos cursos de Teoria da História, indo além das dicotomias entre metódicos e historicistas para evidenciar o que ambas as escolas deliberadamente excluem do campo da reflexão histórica e quais os significados desta exclusão no tempo e no lugar que gerou os princípios do colonialismo moderno. Implica ir mais fundo nas questões de Metodologias da História e questionar-se sobre como o nascimento da História fez opções deliberadas não apenas pelos documentos escritos, mas pelas línguas em que os documentos eram escritos e, sobretudo, pelos sujeitos que os escreveram. Textos africanos, utilizando o alfabeto árabe para escrever em árabe ou em línguas locais, eram conhecidos na Europa desde o século XVI. Mas a eles não se atribuiu a condição de documentos, ainda que emergissem de Estados africanos e tivessem toda a pompa exigida para ser um “documento histórico” no século XIX. Por quê? A ruptura no conhecimento prévio causada pela História da África não se dá apenas pelo acréscimo de narrativas ao estoque cultural dos estudantes. Antes, exige um profundo des-conhecer marcado pela contextualização de saberes já adquiridos à luz de suas origens não na realidade supostamente conhecida, o saber-em-si, mas na matriz cultural do
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processo de produção de conhecimento, o saber-histórico. Aqui, é a própria definição de História que está em cheque. A independência epistemológica de narrativas e histórias africanas passa por este processo de repensar o campo de conhecimentos que muitos estudantes têm como libertário. O des-conhecer abre caminho para outros olhares, permitindo refletir sobre uma oposição binária central para os estudantes: o par tradição/modernidade (MUDIMBE, 2013). Da mesma forma, potencializa a compreensão da natureza política da historiografia ocidental tanto quanto da africana, ao longo da maior parte do século XX (LOPES, 1995). Por tudo isso, avançar no estudo da História da África significa repensar o próprio processo de escritas – sempre plurais – da História. Estes desafios impostos aos estudantes foram sintetizados por um/a dele/as da seguinte maneira: As principais questões da disciplina, na minha visão, englobam a discussão historiográfica, epistemológica e conceitual. Esse processo de construção sobre a produção historiográfica africana ajudou a desconstruir preconceitos e a entender a importância da história africana para o Brasil e para o mundo. (B6)
A trajetória peculiar do campo de História da África na academia brasileira está no cerne desta concepção. A disciplina surge no Brasil a partir de demandas da sociedade civil e de movimentos sociais organizados, como o Movimento Negro, e não do desenrolar do conhecimento acadêmico. Surge como demanda política antirracista e, neste sentido, sua função social na universidade não é apenas agregar um novo conhecimento, mas modificar a concepção profundamente enraizada que se tem sobre a natureza do conhecimento, na maior parte das vezes eurocentrado em suas categorias analíticas. Disso surgem dificuldades para os estudantes.
Conforme
um/a
relata,
trata-se
de
“uma
disciplina
epistemologicamente nova e desacostumada para muitos alunos” (B12).
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Outro/a estudante afirma que “por se tratar de uma discussão muito nova, muitas vezes eu me perdia nos debates propostos em sala” (B13). Como participação em sala e colaboração para a construção do conhecimento eram critérios a serem considerados na autoatribuição de nota, o tema surgiu em vários relatos. Outro/a estudante desabafa: “é difícil uma participação, pois é um assunto novo e nós nos sentimos inseguros para opinar ou até mesmo formular ideias claras dentro da sala de aula” (B1). Após a quebra de expectativas acerca das visões pessimistas e edênicas sobre a África, vários/as estudantes disseram-se surpresos: “me surpreendi com o tanto que eu era cru com a disciplina/conteúdo sobre África” (C2). Outro/a estudante afirmou que, antes de iniciar o curso de História da África I, imaginava que já sabia o suficiente por ter cursado, anteriormente, a disciplina de História e Cultura Afro-brasileira. Aqui, o que temos é a projeção da uma historicidade sobre outra, de problemas sociais e expectativas intelectuais geradas no âmbito da sociedade brasileira sobre as sociedades africanas. Novamente, a surpresa: a pessoa em questão afirmou que, após a disciplina, a sensação era a contrária: há tanto para conhecer que lhe parecia não saber nada. Outra disse que o curso “redimensionou todas as minhas noções sobre a história africana” (C1). Nesta perspectiva, des-conhecer é um processo doloroso, que envolve superação de apegos, sentimentos, crenças anteriores e percepções sobre a própria disciplina História. Em síntese, “é um conteúdo novo, difícil, mas necessário para compreendermos muitas questões” (B10), como concluiu um/a estudante. Conhecer: seleção de conteúdo, métodos e alcance
A primeira batalha no estudo de História da África é avançar sobre os estereótipos popularmente conhecidos sobre o tema, seja o da pauperização das narrativas sobre sociedades e culturas africanas, seja sua
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mitificação. Uma vez em curso o processo de des-conhecer – de superar o senso comum e a idealização –, é preciso construir novas bases para o conhecimento. Neste momento, muitos professores veem-se entre escolhas difíceis. Uma vez que é reconhecido que o continente africano foi o ventre que gerou a espécie humana e que o Homo sapiens surgiu por lá, entre cerca de 100 mil e 200 mil anos, é correto afirmar que a história mais antiga da humanidade está na África. Como lidar com a maior experiência histórica humana em dois cursos de 60 horas? Como estabelecer recortes temáticos, cronológicos, geográficos? Quais critérios utilizar? Como definir o que não será discutido? Conscientes da natureza seletiva de todos os currículos educacionais, somos confrontados com a necessidade de fazer escolhas e aceitar suas implicações (RIBEIRO, 2017; LAVILLE, 1999). Uma vez que a disciplina de História da África surge na academia brasileira como uma pauta social e política de grupos marginalizados, é notável que ela continue a atender às suas origens (GUERRA, 2019). Isso significa que grande parte dos cursos oferecidos no Brasil adota abordagens generalistas de longa duração (em detrimento de temáticas com foco em períodos específicos), centradas na África atlântica e, particularmente, nas regiões mais tocadas pelo tráfico de pessoas escravizadas transportadas para o Brasil. Para o período contemporâneo (séculos XX e XXI), há grande foco nos países africanos de língua portuguesa. São escolhas legítimas e que atendem às demandas da sociedade brasileira e, sobretudo, do currículo da educação básica. Sabedores de que o objetivo do ensino de História nos níveis Fundamental e Médio é possibilitar aos estudantes compreenderem a construção histórica do presente4, revela-se imperativo 4
“O ensino de História se justifica na relação do presente com o passado, valorizando o tempo vivido pelo estudante e seu protagonismo, para que ele possa participar ativamente da construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva”, conforme BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base, versão final. Disponível em http://basenacionalcomum.mec. gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf, acesso em 18/11/2020.
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que a formação docente no nível Superior contemple essa necessidade. Enquanto professores de licenciatura, precisamos estar conscientes de que formamos outros professores. Por outro lado, a novidade que o campo de estudos ainda carrega é somada à amplitude cronológica, geográfica e temática possível no âmbito dos estudos africanos. Diante disso, parece-me pernicioso reduzir o conhecimento produzido nos cursos de História da África às demandas objetivas da educação básica brasileira. Embora essas precisem ser atendidas, cabe argumentar que os estudantes também têm demandas particulares e interesses. O Egito Antigo e sua condição de sociedade negra são temas que mobilizam paixões e curiosidade. “Burquina Fasso” é o nome de um país sobre o qual a maioria dos estudantes nunca ouviu falar. Intelectuais centrais ao pensamento contemporâneo, como Franz Fanon ou Aimé Cesaire, ou fenômenos literários, como Chimamanda Adichie, não cabem nos limites de um campo mirado pelo ângulo atlanticocêntrico de perspectiva lusobrasileira. Em outras palavras, parece-me necessário ampliar a bagagem cultural dos estudantes excedendo os limites do conhecimento prático, trazendo para o debate a diversidade de culturas, sociedades, cronologias e temas que compõem o campo internacional de estudos sobre História da África, e não apenas sua existência no Brasil. Neste sentido, busco contemplar as legítimas pautas sociais e políticas que estão no nascimento do campo de forma associada à expansão dos conhecimentos gerais dos estudantes sobre a história africana, para além da estrutura escravista ou das dinâmicas do colonialismo europeu. O desafio, aqui, tem sido a inserção destas duas agendas em dois cursos com duração de 60h cada, distribuídos em 30 encontros com duração de 02h. A alternativa tem sido a indicação de uma carga de leitura considerável, que também tem desafiado os estudantes. Um/a dele/as se autoavaliou a partir da quantificação da bibliografia obrigatória que conseguiu ler: “o
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curso teve a leitura de 26 textos, eu li 21 textos completos” (B23). Ao sugerir mudanças nos cursos para os próximos semestres, um/a estudante declarou: “acredito que havia uma carga muito grande de texto. Muitas vezes, eu não conseguia acompanhar a ordem das leituras. Principalmente quando chegava a época das provas, eu me perdia” (B34). Compartilho esta informação com os colegas professores por acreditar que precisamos refletir sobre ela, na construção de nossos cursos. Não obstante, destaco que alguns/mas estudantes destacaram que, apesar de extensa, a bibliografia parecia-lhes pertinente diante da amplitude das possibilidades de estudo. “Achei a carga de leitura pesada, mas ao mesmo tempo necessária, visto o pequeno número de horas para tanto conteúdo” (B7), pondera um/a estudante. Outro/a corrobora: “a carga de leitura foi bastante pesada, porém acredito que necessária” (B9). Houve ainda quem dissesse “achei ‘bacana’ a dinâmica dos textos” (B15). Apesar das dificuldades e excessos que precisam ser reavaliados por mim, enquanto professor, aponto a percepção positiva dos estudantes para evidenciar que, na ausência de parte da bibliografia que vai além das questões centrais pertinentes ao ensino de História na educação básica, muitos talvez não tivessem acesso a este conhecimento, posteriormente. Além disso, discutir temas que superam o currículo básico de História da África possibilita formar professores mais instrumentalizados para o exercício profissional, com acervo cultural mais amplo. É o que me permite concluir outro comentário: “acredito que todas as discussões da disciplina foram muito pertinentes, sobretudo na nossa formação enquanto professores” (B10). Pensando na formação integral dos estudantes – e não apenas profissional –, penso que o curso de História da África necessita, também, criar metodologias que ampliem a ressonância das discussões realizadas na universidade ao longo da sociedade. A ampliação do currículo busca essa
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alternativa, consciente de que se oferece aos estudantes a possibilidade de um olhar geral sobre vários temas que, na medida do interesse de cada um, poderão ser aprofundados posteriormente em estudos individuais. Tal ampliação permite dialogar com outras disciplinas, como literatura, biologia, museologia, economia, e outros ramos do conhecimento histórico. Acerca deste aspecto, um/a estudante destaca que um “ponto ‘top’ foi a interdisciplinaridade. Adorei o [texto de Philip] Havik (2002) porque ele trabalha com História das Ciências e das doenças através do estudo da doença do sono. Lindo! Amei” (B15). Outro/a informa: “consegui fazer um paralelo das discussões com a História Indígena” (B16). Oferecer alternativas para que os estudantes encontrem seus interesses potencializa o alcance do conhecimento além da sala de aula. Um/a estudante argumentou que “o entendimento dos textos se tornou mais eficaz com as interdisciplinaridades, [estou] me sentindo mais segura ao trabalhar com pesquisas, em aula ou até mesmo para explicar/conversar com alguém” (C3). A diversificação dos temas discutidos permite que os estudantes possam encontrar caminhos para atingir seus objetivos pessoais ao longo do curso. Em contrapartida, tal metodologia exige do professor flexibilidade em seus instrumentos de avaliação, uma vez que se está trabalhando com a ideia de que diferentes trajetórias serão percorridas dentro do mesmo curso, a partir de um currículo comum oferecido a todos. Diante disso, busco trabalhar com quatro instrumentos de avaliação. O primeiro é uma prova escrita de caráter somativo ao término da primeira unidade, na qual são discutidas questões teórica, conceituais e historiográficas sobre os estudos africanos. Em seguida, é solicitado aos estudantes que apresentem um seminário em grupo, sobre tema escolhido pela equipe a partir de uma listagem predefinida. Aqui, o fundamental é desenvolver a capacidade de trabalho em equipe, produção de debate entre os membros da equipe
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sobre um tema específico e exercício da exposição oral à turma. O trabalho final é um artigo com análise de fontes primárias, revisão bibliográfica ou escrita criativa a partir dos textos discutidos. É dada ampla liberdade aos estudantes para escolha dos temas. Tal procedimento não passou despercebido: “foi muito bom realizar as atividades avaliativas (prova, seminário e artigo), pois foram três atividades que procuraram estimular diferentes competências” (A19), enfatiza um/a estudante. A quarta é a autoavaliação, que agora nos permite estas reflexões. Conhecer, na perspectiva abordada neste capítulo, significa ir além do aprendizado formal medido através de instrumentos tradicionais, como provas. Conhecer implica desenvolver recursos para acessar o conhecimento, validá-lo através da análise dos procedimentos metodológicos que geraram o produto/artigo/pesquisa, compreendê-lo a partir da historiografia e comunicá-lo de diversas maneiras. O trabalho final de um/a estudante do curso de Dança que cursava uma das disciplinas como optativa foi adaptar um dos textos discutidos (LARANJEIRA, 2015) para um projeto de espetáculo artístico: uma forma de comunicação e expressão do conhecimento produzido em sala que eu não ousaria imaginar, no início do curso. O comentário de outro/a estudante sintetiza a metodologia aplicada: não se busca o domínio absoluto de todos os temas, mas sua identificação e o desenvolvimento de trajetórias individuais: Saio dessa disciplina não com todo o conhecimento que poderia ter obtido, mas ainda assim com um considerável aprendizado e com outro olhar sobre o tema, possuindo uma consciência sobre a grande diversidade presente no continente africano e com uma visão bastante diferente daquela representada diariamente na mídia (uma África carente de ajuda). Enxergo essas mudanças de perspectiva com um grande crescimento pessoal. (C7)
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Portanto, meu argumento é que a História da África no ensino superior cumpre duas funções importantes: capacitar professores para educação básica, através da seleção de temas que contemplem o currículo deste nível de ensino; e ampliar o acervo cultural dos estudantes, possibilitando-lhes conectar conhecimentos sobre África às suas áreas de interesse. Ambos convergem no enfoque epistemológico dado à disciplina e em seu papel transformador na percepção da história da historiografia. A ampliação do acervo cultural dos estudantes é potencializada ao se explorarem temáticas menos presentes no currículo da educação básica, mas que ocupam papel relevante na formação do sujeito, passando por áreas como história política, econômica, social, cultural, das ciências, das técnicas, da alimentação, das relações de gênero, do próprio conhecimento. Na medida em que os cursos promovam a formação integral do sujeito, pensando em sua atuação profissional somada às demais experiências e interesses, e utilizem metodologias de avaliação que sejam flexíveis e permitam aos estudantes eleger seus próprios caminhos dentro da bibliografia indicada, o conhecimento produzido alcançará públicos mais diversos que aquele restrito aos espaços escolares. Como declara um/a estudante, “conheci coisas que vou citar e debater (muito mais entre amigos do que em sala de aula) por um bom tempo” (C9). A relação entre a ampliação do escopo bibliográfico (ainda que com algum prejuízo na escala de análise) se mostrou produtiva, com a ressalva acerca da quantidade de textos, a ser revista. Produzir conhecimentos em sala de aula com maior abrangência a possíveis áreas de interesse fez com que os estudantes levassem as discussões para outros espaços de sua vida, aumentando o público atingido pelo curso de História da África. “Li a maior parte dos textos, utilizei as informações obtidas em outras áreas, inclusive nas minhas conversas do convívio social” (B17), declara um/a estudante. Outro/a afirma: “tive diálogos nos meus espaços de
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sociabilidade sobre o que era discutido” (C6). Conhecer implica conceber o alcance do que é conhecido, demandando seleções de conteúdos, métodos de abordagem e avaliação. Este ponto perpassa a relação do conhecimento com o sujeito que conhece, seus interesses e suas formas de expressá-lo. “Me sinto bem mais confiante em relação ao debate sobre a História da África, é como se todos os conhecimentos ao longo das disciplinas fizessem total sentido agora” (C5), completa um/a estudante. Reconhecer-se: solucionando “mal resolvidos”
Um dos desafios dos cursos de História da África é estabelecer a distinção entre história africana e história afro-brasileira. Ainda que haja continuidades e partilhas entre os dois campos, eles não são sinônimos. Este é um dos primeiros enfrentamentos: mesmo após quase um semestre de curso de História e Cultura Afro-brasileira, ainda se ouvia nos corredores os alunos matriculados comentarem sobre “o curso de África”. Uma vez estabelecida a distinção, a história da África parece tornar-se mais distante dos alunos, embora também mais instigante. Por outro lado, a história afro-brasileira ganha uma dimensão mais próxima, ligada à realidade histórica e social experimentada por eles em seu cotidiano. Deixa de ser, portanto, um discurso de afirmação ou exclusão e torna-se uma ferramenta para compreensão de si, de suas relações sociais e do mundo à sua volta. Essa transformação vivenciada no desenvolvimento do curso marca uma forma de currículo oculto: aprendizados que não foram previamente concebidos como objetivos das disciplinas, mas que se mostram relevantes na formação integral dos estudantes (ARAUJO, 2018, p.29-39). O autoconhecimento alcançado por alguns alunos demonstra este processo, como o inesperado depoimento a seguir ratifica:
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A disciplina foi importante para o aprimoramento de alguns conceitos que ainda eram, digamos, mal resolvidos. Me permitiu que pudesse conhecer um pouco mais de mim mesmo. Parece estranho tal fala, mas é assim que vejo. Alguns textos me levaram a refletir toda a minha vida, na qual eu mesmo não sabia que estava sendo racista e preconceituoso, dentro de minha própria casa. Em especial, o texto do Alain Kaly (2003) foi o de fundamental importância para que tivesse tal percepção. Sempre era meu interesse estudar algo relacionado à área, mas nunca entendia o porquê. Hoje, consigo ter noção de tal interesse. Até mesmo foi de fundamental importância para realmente entender a perversidade do racismo na sociedade. (A1)
O racismo existente na sociedade brasileira foi constantemente silenciado, negado, ignorado, em favor do mito da relação harmônica entre as raças cujo objetivo é produzir uma memória nacional marcada pelo sentimento de pertencimento e coesão, relegando as culturas negras e indígenas à condição de subculturas, memórias subterrâneas na sociedade.5 Tal tentativa de inclusão tem sido feita historicamente pela perspectiva da parcela branca da sociedade brasileira, cujas características físicas, manifestações culturais e modos de vida são elevados à condição de norma. De forma complementar, o que destoa desta suposta norma é reduzido à subalternidade, à condição inferior: a cor da pele, o tipo de cabelo, a religiosidade, as manifestações culturais de matriz africana. No espaço escolar, o impacto dessa política de invisibilização subalternizada é dilacerante na constituição de experiências e memórias escolares (GOMES, 2012). Nesse âmbito, o depoimento acima evidencia que a disciplina de História e Cultura Afro-brasileira caracterizou-se como um espaço institucionalizado que permitiu reflexões sobre temas que, antes, não podiam ser compreendidos porque não eram discutidos no espaço escolar.
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“Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à ‘memória oficial’, no caso a memória nacional” (POLLACK, 1989, p.04).
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Experiência por si só não gera consciência. A consciência sobre algo é produto da experiência (vivida ou aprendida) mediada pela reflexão sistemática. Não pensar sobre o racismo, suas características e formas de realização limita sua compreensão, mas não impede sua existência. A pedagogia do silêncio nas escolas brasileiras alimentou este quadro durante décadas e, hoje, ainda pode ser encontrada em salas de aula e espaços escolares de todo o país (GONÇALVES, 1985; GOMES, 2003). Portanto, a inexistência de uma educação pautada na reflexão sobre as relações étnicoraciais mantém “mal resolvidos”, impedindo o sujeito de perceber-se como reprodutor/beneficiário de atitudes racistas tanto quanto de identificar ações que lhe são dirigidas como racialmente orientadas. Através dos debates realizados no decorrer do curso, o/a estudante que relatou o trecho acima acrescenta: “antes, advogava que não havia sofrido qualquer ato racista ao longo da minha vida. Agora percebi que não foi bem assim, de forma indireta e inconsciente, da mesma forma que sofri racismo, também o praticava” (A1). E completa: “foi um momento doloroso ter tal percepção, mas fundamental para o meu crescimento” (A1). As disciplinas de História da África impactaram os estudantes no que concerne aos temas debatidos e seu desconhecimento sobre eles. Embora em menor escala, a possibilidade de produzir autoconhecimento também se mostrou presente nelas. Julgo que dois momentos em especial precisam ser destacados. Em um deles, uma estudante negra me procurou após a aula para conversar. Começou tímida, pouco confortável, com notável dificuldade para se expressar. Com o avanço da conversa, ganhou confiança. Disse-me, com um misto de tristeza e contentamento, que tinha vontade de chorar durante as aulas. Fiquei preocupado e pedi que me explicasse, se pudesse, o que a deixava desconfortável. Ela disse que não era desconforto, era emoção. “Eu olho para as outras pessoas negras na turma e quero perguntar se elas também não têm vontade de chorar. Eu nunca tive
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aulas nas quais eu pudesse me ver ali, que falassem sobre algo que também era sobre mim. Eu fico emocionada”. Eu também fiquei. Outro exemplo é de outra aluna, também negra, que me procurou depois da aula para conversar sobre o trabalho final, no qual gostaria de analisar os crucifixos de metal do cristianismo conguês (FROMONT, 2017). Disse que queria trabalhar o tema porque tinha ficado muito impressionada com a religião católica no reino do Congo e as experiências cristãs africanas. Até então, conversávamos sobre trabalho final e objetos de pesquisa. Foi quando ela me explicou a origem do interesse. Como militante no Movimento Negro Universitário, ela ouvia constantemente de seus companheiros de luta que ela ainda não havia se descoberto, precisava reconhecer sua ancestralidade, origens e cultura africana. A aluna era católica e, para muitos colegas, aceitar a própria negritude passava por abandonar as religiões cristãs e professar aquelas de matriz afro-brasileira. Mas suas experiências pessoais eram perpassadas pelo cristianismo, inclusive seu engajamento político através de movimentos sociais católicos. Aquela aula possibilitou-lhe resolver um dilema: “é possível ser negra, militante e católica”. No curso de História e Cultura Afro-brasileira, o foco da reflexão dos alunos concentrou-se no autoconhecimento e aprendizado para cidadania, como elucidado pelo depoimento que abre esta seção. “As discussões em sala e os temas propostos me permitiram refletir sobre meu comportamento social e entender melhor a religião que pratico” (A8), declarou um/a estudante. De forma não intencional, os temas foram gatilhos para que os estudantes pensassem sobre si e sua relação com a sociedade, sua prática cotidiana e suas atuações políticas. Outro/a estudante informa que “minha participação e aproveitamento na disciplina foram muito bons, e me refiro ao aprendizado e às conexões estabelecidas não só com outras disciplinas do curso, mas também com minha vida enquanto cidadão e
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militante do movimento negro” (A12). Neste quadro, torna-se evidente que a disciplina foi entendida pelos alunos como elemento útil ao exercício da cidadania: “consegui aproveitar para a vida acadêmica e para minha formação pessoal como cidadã” (A28), finaliza outro/a estudante. Enquanto professor, notei que várias aulas de História e Cultura Afro-brasileira tornavam-se espaços para extravazar sentimentos acumulados ao longo da trajetória escolar, particularmente acadêmica. No debate de textos que apontavam o racismo nas relações sociais, suas articulações com as esferas de poder e sua reprodução em contextos universitários, vários estudantes sentiram a necessidade de compartilhar experiências com racismo que tinham vivenciado em disciplinas ou espaços sociais dentro da universidade. Se, para os alunos negros, o momento era de liberação de sentimentos reprimidos pelo próprio sistema de ensino, para os alunos brancos o choque não foi menor: muitos não imaginavam que as situações narradas aconteciam tão próximas a eles, muitas vezes na presença deles sem que a percebessem. E não a percebiam justamente porque, para eles também, o entendimento de como o racismo se manifesta no dia a dia estava “mal resolvido”: não estavam conscientes do privilégio de ser branco, no Brasil, nem possuíam as ferramentas adequadas para identificar este grave problema em manifestações sutis. A experiência em sala evidenciava a teoria discutida: a educação para as relações étnico-raciais deve ser oferecida a todos (BRASIL, 2004; SILVA, 2007). Considerações finais
Ao refletir sobre o ensino de História da África (I e II) e História afrobrasileira no Ensino Superior, busquei analisar quais são os principais desafios que essas disciplinas impõem aos professores e como elas impactam na trajetória acadêmica e subjetiva dos estudantes. As discussões apresentadas partiram de minhas percepções ao ministrar os três cursos
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associadas às autoavaliações realizadas pelos estudantes, acerca de sua participação e desempenho ao longo deles. Cabe notar que não lhes foi pedido que falassem da importância dos temas, seu impacto em suas vidas ou dessem qualquer sinal neste sentido. Foi-lhes demandado que refletissem sobre o envolvimento que tiveram na participação nas aulas, leitura dos textos, comprometimento e assiduidade. Portanto, as respostas que deram e compõem esse capítulo não eram previamente esperadas e o recurso de avaliação da aprendizagem empregado – a autoavaliação – não foi concebida, inicialmente, como instrumento para realização de uma pesquisa. Foi uma ferramenta pedagógica que, diante dos resultados, galgou outros usos. As seções que compõem este capítulo evidenciam os três momentos mais marcantes na trajetória dos alunos ao longo dos cursos. A necessidade de contextualizar o conhecimento prévio, despindo-o da condição de saber-em-si e percebendo-o como produto de relações intrínsecas entre política e conhecimento, é o primeiro estágio enfrentado pela maior parte dos estudantes. É o que chamei de des-conhecer, que implica menos um desconhecimento prévio e mais a necessidade de reconceber as impressões preliminares sobre o tema, historicizando-as. Em seguida, o ato de conhecer é marcado pela agenda da educação básica e pela necessidade, advogada por mim, de ampliar o acervo cultural dos estudantes para além da África necessária ao Brasil. Estudo, leitura e dedicação andam abraçados ao diálogo, interesses pessoais e alcance das discussões fora dos espaços formais de aprendizado. Conhecer é praticar, compartilhar, comunicar. Por fim, reconhecer-se é o momento em que os cursos deixam sua dimensão de conteúdos acadêmicos para formação e atuação profissional e atingem o estatuto que poderíamos chamar de currículo oculto: o aprendizado produzido nestas disciplinas superaram os objetivos que lhes foram previamente atribuídos.
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Num país em que estudantes descendentes de africanos, asiáticos, europeus e indígenas foram igualmente privados do conhecimento sobre as sociedades africanas e as culturas afro-brasileiras, a existência destas disciplinas nos cursos superiores cumpre uma função pública. Além da formação profissional, que está no cerne dos objetivos dos cursos, elas permitem aos estudantes melhor conceber o próprio conhecimento, suas vinculações políticas, amplitude, diversidade e potenciais para autorreconhecimento e exercício pleno da cidadania. Os caminhos são tortuosos, às vezes marcados por “momentos dolorosos”, com asseverado por um/a estudante, mas necessários à construção de um país mais justo, que ofereça oportunidades iguais a pessoas diferentes, que aceite e valorize as diferenças raciais e culturais que o caracterizam. Nestes professores em formação reside a esperança por um ensino antirracista na educação básica. Referências ARAUJO, Viviane Patricia Colloca. O conceito de currículo oculto e a formação docente, REAe - Revista de Estudos Aplicados em Educação, v. 3, n. 6, jul./dez. 2018, p.29-39. BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base, versão final. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_1105 18_versaofinal_site.pdf, acesso em 18/11/2020. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC; CNE, 2004. FROMONT, Cecile. Tecido estrangeiro, hábitos locais: indumentária, insígnias Reais e a arte da conversão no início da Era Moderna do Reino do Congo, Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.25, n.2, p. 33-53. Mai.-Ago. 2017.
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3 Estudos africanos e afro-brasileiros: possibilidades de intervenção pedagógica Marcelo Pagliosa Carvalho 1 Introdução
As visões sobre a África no Brasil persistem carregadas de estereótipos e preconceitos. Há uma lacuna acerca de análises mais realistas em relação a este continente. Essas percepções repercutem negativamente na produção de identidades do povo brasileiro, em especial da população negra, maioria no país. A discriminação racial contra os(as) negros(as) é alicerçada no fato de que as práticas e/ou contribuições de seus ancestrais são abafadas, marginalizadas ou deturpadas (SERRANO, WALDMAN, 2007). Os legados dos africanos para a ciência e a cultura universais são, na maior parte dos casos, simplificados, desprezados, ridicularizados ou excluídos dos currículos escolares brasileiros. Nesse contexto de disputas por políticas educacionais que incluam a História e a Cultura Africana e Afro-Brasileira, insere-se a implantação e o desenvolvimento da Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Tal iniciativa deve ser considerada enquanto uma política de ação afirmativa cujo objetivo é auxiliar na implementação do arcabouço legal desenvolvido no Brasil (2003-2016), que procurou assegurar maiores possibilidades educacionais à população negra, bem como valorizar a História, a memória, os saberes e
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Doutor em Educação (USP), Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) São Luís/Maranhão/Brasil. [emailprotected].
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conhecimentos dos(as) negros(as). A Lei nº 10.639/20032 pode ser destacada como a matriz principal desse rol de documentos legais que necessitam de políticas mais incisivas para que, de fato, tenha-se no país uma mudança nas relações étnico-raciais. O objetivo deste artigo é realizar uma discussão sobre os Estudos Africanos e Afro-Brasileiros enquanto possibilidades de intervenção pedagógica na educação básica e na universidade. Estudaremos a importância do estudo da História da África no Brasil. Analisaremos a Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da UFMA (2015) e os eixos interdisciplinares que alicerçam o seu Projeto Político-Pedagógico. Trata-se de uma iniciativa de reflexão sobre o eurocentrismo presente nos currículos escolares brasileiros e de combate aos estereótipos ou romantizações presentes no imaginário sobre as Histórias de África e de suas diásporas. História da África e História do Brasil: proximidades e tensionamentos
A História da África não pode ser ignorada, esquecida, tratada como de menor valor, afinal, as relações do Brasil com o continente africano são estruturais e estruturantes. Não há como se estudar a história brasileira sem se adentrar na História da África, sem se ater nas repercussões das contribuições dos africanos para a construção da sociedade brasileira, quer em aspectos econômicos, políticos, culturais, religiosos etc., quer para se entender os conflitos e tensões que marcam tais relações. Tensões internas e externas. As histórias enlaçam-se, enriquecem-se, entrecruzam-se. Histórias de trocas culturais que repercutem com força nos dias atuais em nosso
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BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, e dá outras providências.
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país. Repercussões em forma de ganhos culturais ou de discriminações contumazes. O povo brasileiro só se (re)conhecerá de fato quando se entender enquanto parte importante da história dos povos africanos, com o reconhecimento dos contributos africanos em suas formações sociais, sem os romantismos, exotizações ou estereótipos, tarefa distante de se cumprir. Oliva ressalta a importância desse reconhecimento: [...] A História da África e a História do Brasil estão mais próximas do que alguns gostariam. Se nos desdobramos para pesquisar e ensinar tantos conteúdos, em um esforço de, algumas vezes, apenas noticiar o passado, por que não dedicarmos um espaço efetivo para a África em nossos programas ou projetos. Os africanos não foram criados por autogênese nos navios negreiros e nem se limitam em África à simplista e difundida divisão de bantos ou sudaneses. Devemos conhecer a África para, não apenas dar notícias aos alunos, mas internalizá-la neles [...](OLIVA, 2003, p. 424).
O preconceito ou discriminação racial e a desigualdade nos indicadores educacionais e de renda entre brancos e negros presentes na sociedade brasileira são demonstrações do sistêmico, sistemático e sintomático processo de não valorização de todas as contribuições da população negra. Por isso, é essencial a desconstrução da imagem que supõe a existência de povos superiores e inferiores, afinal, a história mundial é muito mais complexa e foi construída com importantes contribuições dos africanos e de seus descendentes em diáspora (SILVÉRIO, 2013, p. 15). Durante os últimos quatro séculos, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do mundo a real história da África. As sociedades africanas passavam por sociedades que não podiam ter história. Certos postulados sustentavam que essas sociedades não podiam ser objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e documentos escritos. Demonstrar que essas sociedades tiveram uma história, e que ela foi substituída pela versão
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oferecida no bojo do devastador processo colonial é dever de quem trabalha nas ciências humanas, sobretudo aos(às) historiadores(as). Mais ainda, a tarefa contemporânea desses(as) profissionais engloba também a reconstituição, em diferentes níveis, contextos e situações, da história que está talhada nas práticas sociais (SILVÉRIO, 2013, p. 14). Envolve mudanças de mentalidades, ou seja, de atitudes, comportamentos, hábitos, crenças e valores pré-concebidos em uma esteira consagrada na falsidade de um pensamento eurocêntrico construído no período dos horrores coloniais e ainda presente na contemporaneidade. Para tanto, é imprescindível uma intervenção pedagógica de longo prazo, permanente, compartilhada, global e extremamente importante para garantir tal reconstituição histórica. Os currículos da educação básica e do ensino superior necessitam desse processo educativo democrático, em defesa da história e dos direitos humanos do povo africano e de sua diáspora. A intersecção da história e cultura africana com a brasileira auxilia a valorizar positivamente as relações entre os diversos grupos étnico-raciais que convivem no Brasil. O desconhecimento dessa intersecção, em via contrária, produz visões distorcidas, que repercutem, nos extremos, em ações discriminatórias, como nos casos de discriminações raciais que vitimam negros. O senegalês M. Amadou-Mahtar M’Bow, no Prefácio de História Geral da África, pontua que a real história do continente africano foi escondida do mundo por esses mitos e preconceitos, como se as sociedades africanas não pudessem ter história, e compara o uso das fontes para a construção das narrativas históricas que eram/são consideradas como válidas: Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor
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à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em suas vidas, a trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser. Tomando frequentemente a “Idade Média” europeia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais tanto quanto as instituições políticas não eram percebidos senão em referência ao passado da Europa (M’BOW, 2010, p. XXI).
Não foi à toa, portanto, que o grupo de especialistas em África que se dedicou a confeccionar a Coleção “História Geral da África” da UNESCO dedicou especial atenção à questão da metodologia, das fontes e no enfrentamento dos problemas e embates históricos e historiográficos que eram alvo de críticas de pesquisadores eurocêntricos. Barbosa sintetiza em cinco pontos a perspectiva africana presente na geração de historiadores africanos responsáveis por essa Coleção: 1) método internalista: do regionalismo ao difusionismo intra-africano e ao sujeito da resistência; 2) história interdisciplinar, materialista, realista e empírica; 3) definição verificável; 4) princípio universalista; 5) separação do essencial do secundário na explicação histórica (BARBOSA, 2018). A História de África não pode ter um papel secundário e pequeno em relação às histórias de outras regiões ou povos. A história da humanidade é muito complexa e fruto de diferentes contribuições, de várias culturas, que nos deixaram como herança conhecimentos científicos e tecnológicos O campo dos estudos africanos, seja no plano internacional, seja no nacional, vem colaborando para o desenvolvimento de pesquisas que transformam as análises historiográficas sobre a História da África. Para Hountondji, a pergunta central que permeia as análises nessa área não poderia ser outra: em que medida, são africanos os chamados estudos africanos? O autor beninense defende que as próprias sociedades africanas
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devem apropriar-se do conhecimento sobre elas, pois seria importante a promoção de uma tradição autónoma de investigação e conhecimento que desse conta dos problemas e questões que interessam aos próprios africanos. E complementa: o tipo ainda preponderante de pesquisa é extravertido, ou seja, guiado para fora, destinado a ir ao encontro das necessidades teóricas e práticas das sociedades do Norte.3 Towa (2015) afirma que o debate acerca do reconhecimento ou da construção da filosofia africana – com destaque à filosofia negro-africana – tem que se opor ao racismo colonial, às armadilhas do neocolonialismo e à ofensiva do dogmatismo das mitologias semíticas. A recuperação de uma antiga herança negro-africana a ser rejuvenescida deve ter um peso maior do que o simples significado de um empréstimo da cultura europeia. O mesmo deve ocorrer no que tange ao desenvolvimento do pensamento historiográfico africano. A inter-relação entre as disciplinas se faz presente no âmbito dos estudos africanos, como ressalta Hountondji (2008, p. 150): [...] entre a história africana e a sociologia africana existe, claramente, uma complementaridade objectiva, visto que a situação presente de qualquer sociedade decorre, directa ou indirectamente, do respectivo passado. Por outro lado, um bom conhecimento do presente e da lógica dos acontecimentos na vida actual pode oferecer pontos de vista úteis para compreender o passado. Assim, a sincronia remete para a diacronia e vice-versa. A história e a sociologia são apenas um exemplo. Podem encontrar-se relações similares entre todas as disciplinas que constituem os estudos africanos.
A inclusão da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos escolares brasileiros, portanto, se relaciona com a democracia, os
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Sobre essa questão, recomenda-se observar as críticas de Hountondji (2008, p. 152-156) à etnofilosofia e ao que ele denomina como “pecado original” que demarca os estudos africanos na Europa durante o séc. XX.
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direitos humanos e a inclusão de todos os sujeitos coletivos na história. A descolonização do currículo, a democratização do processo de formação na educação básica e no ensino superior e a garantia de reflexividade e autonomia colaboram para a construção de espaços de intercâmbio e de diálogo. Subsidiam, inclusive, o reconhecimento de situações em que uma determinada metodologia ou certo conteúdo está marginalizando ou discriminando minorias sociológicas em nome de uma maioria ideológica e hegemônica, mesmo que não seja maioria demográfica (HERNANDES, 2016, p. 40). No Brasil, a implementação da Lei nº 10.639/2003, que obrigou a inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira nos currículos escolares, não encontra barreiras apenas na educação básica, mas também em cursos de nível superior, mesmo em cursos de pedagogia ou nas licenciaturas. Gomes ressalta que muitas dessas graduações têm pouco ou nenhum acúmulo sobre a temática racial e muitas vezes são permeadas de resistência a essa inclusão (GOMES, 2007, p. 97-109). Sobre a obrigatoriedade da inclusão da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos da Educação Básica, é importante frisar, seguindo o que determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que a sua relevância “[...] não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática” 4. O estudo sobre o continente africano – real, desprovido de pré-conceitos ou romantismos – coadjuva para uma melhor compreensão de 4
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC; SEPPIR, 2004, p. 17.
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mundo, da história brasileira, bem como colabora para a busca de entendimentos científicos mais justos e equilibrados no trato dos diversos legados dos povos que compõem a humanidade e auxilia na construção de novas abordagens ou epistemologias. A Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da UFMA
Com sede na Cidade Universitária do Campus de São Luís-Maranhão, a Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da UFMA tem como objetivo oferecer uma graduação interdisciplinar em Ciências Humanas. As áreas do conhecimento englobadas nas disciplinas obrigatórias do curso são: História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Letras, Educação e Música. A área de História é a que possui o maior número de disciplinas no Projeto Pedagógico do curso. A estrutura curricular possui disciplinas da área de História que são voltadas diretamente à temática do curso, como: “África I: Sociedades e Culturas”; “África II: Colonialismo e Independências”; e “A Diáspora Africana”. Outro diferencial é o oferecimento de disciplinas concernentes aos estudos africanos e afro-brasileiros: “Filosofia Africana”; “Sociologia Africana”; “Educação para as Relações Étnico-Raciais”; “Geografia da África I: população, cidades e geoeconomia”; e “Literatura africana e afro-brasileira”. A estrutura da área de História é baseada em um currículo por território, ou seja, não há disciplinas cujos marcos são periodizações históricas, tais como História Medieval, Moderna, Contemporânea, comuns na maior parte dos cursos de História no Brasil. A referência são os continentes ou grandes extensões territoriais, por exemplo: “História da Europa: Poder, Guerras e Revoluções”; “América do Sul: História e Sociedades”; “Oriente
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Médio, Ásia e Oceania: sociedades e povos”; e “História do Caribe, da América Central e da América do Norte”. Enrique Dussel, ao tecer considerações acerca de uma História das etnicidades, ressalta a importância de se criticar a periodização ideológica da História: Esta maneira de interpretar a história prepara-nos para uma compreensão do fenômeno da “modernidade” desde outro horizonte histórico, que permite com plena consciência criticar a periodização ideológica da história em História Antiga, Medieval e Moderna, que é ingenuamente helenocêntrica e eurocêntrica (DUSSEL, 2002, p. 25, aspas e itálicos do autor).
Para o autor, a divisão “pseudocientífica” da História em Idade Antiga (antecessora), Média (preparatória) e Moderna (sinônimo de Europa) seria uma organização ideológica e deformante da História. O rompimento com esse horizonte redutivo possibilitaria à filosofia (e à ética) libertar(em)-se da falsa conexão que colocam a universalidade e o europeísmo como idênticos. A proposta desta Licenciatura afirma a História da África e de suas diásporas, a memória, a cultura, as cosmovisões dos povos africanos e diaspóricos enquanto conhecimentos legítimos, enquanto conhecimentos científicos. Não são considerados como simples objetos de estudo, ainda comuns em alguns estudos nas áreas das ciências humanas/sociais – mas não só nelas. Ao contrário, todos esses aspectos advindos dos(as) africanos(as) e das diásporas africanas são tidos como conhecimentos acumulados pela humanidade, como todo conhecimento humano, não importando a origem étnico-racial, territorial de origem, matriz religiosa, entre outros fatores. Sacristán destaca que os conteúdos que alicerçam os currículos escolares não são politicamente indiferentes, uma vez que a seleção
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considerada como adequada está sujeita às forças dominantes de cada momento e aos valores que historicamente foram delineando o que se acredita que é imperioso para ser ensinado ou transmitido: “[...] Para conhecer o que há por trás de qualquer das práticas é preciso explicitar as idéias, os interesses, os valores e os mecanismos de decisão que a determinam” (SACRISTÁN, 2000. p. 155). Outra particularidade da estrutura curricular da Licenciatura é o destaque para disciplinas que tratam da América Latina: “América do Sul: História e Sociedades” (História) e “Movimentos sociais e relações étnicoraciais na América Latina” (Sociologia). Há, ainda, disciplinas comuns em cursos de licenciaturas, como as de Fundamentos da Educação, e disciplinas gerais ou introdutórias nas áreas do conhecimento do curso. Ênfase também para a disciplina “Epistemologias do Sul” (Filosofia). O Projeto Pedagógico da Licenciatura procura ressaltar que não se trata de trocar uma cosmovisão eurocêntrica por uma africana. A intenção é respeitar e socializar as narrativas de todos os sujeitos históricos que tiveram suas histórias distorcidas e omitidas no chamado “Conhecimento Acumulado pela Humanidade”. Tal acepção é consoante ao destaque realizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana: “[...] não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira” 5. No Brasil, a crítica ao currículo eurocêntrico foi um dos motivos principais que levou pesquisadores(as) e o movimento negro a exigir do Estado brasileiro leis que abarcassem a História e Cultura Africana e Afro-
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BRASIL, Op. Cit., 2004, p. 17.
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Brasileira. A Lei nº 10.639/2003 é o maior sinônimo da conquista dessa luta empreendida por esses sujeitos. De acordo com o moçambicano José P. Castiano, no quadro da modernidade, a forma como se concebe a ciência, em geral, é eurocêntrica e carrega consigo conceitos de centralidade epistêmica que devem ser questionados: [...] O eurocentrismo consiste em confundir ou sobrepor o discurso “universalista” com momentos ou processos que, de facto, estão circunscritos ao continente europeu. Assim também, muitas conquistas na cultura, na ciência, na economia, na política, etc. que são descritas como sendo europeias são, de facto, produto da criatividade de vários povos do mundo. Assim, no campo das ciências, a modernidade cria o epistemecídio de outras regiões do mundo diferentes da Europa (CASTIANO, 2013, p. 45-46, itálicos do autor).
A libertação epistêmica em relação a esse conhecimento hegemonicamente eurocêntrico e o questionamento às convenções seculares de exclusão naturalizadas sob os trajes e ultrajes de discursos universalistas alicerçam a proposição dessa Licenciatura. O direito à autoemancipação dos conhecimentos dos povos da chamada “periferia” (em sentido oposto ao que se convencionou situar o eurocentrismo como sinônimo de “centro epistemológico”), a busca por um currículo e por uma construção geográfica, histórica, literária, sociológica, filosófica e de um pensamento educacional que valorizem visões não-eurocêntricas da modernidade, sem, por óbvio, desconsiderar toda a produção também construída no decorrer dos séculos pelos europeus. Como salienta Castiano, ao destacar a importância da tomada de consciência de uma posição epistêmica, é preciso “[...] assumir crítica e conscientemente o facto de que nenhum ser humano, seja ele do ocidente ou do oriente, sul ou norte, pode pretender assumir-se
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como sujeito possuidor de um saber absoluto [...]”(CASTIANO, 2013, p. 55). Teorizando a partir de Moçambique, Castiano e Ngoenha defendem o conceito de “intersubjectivacção”, que seria, no contexto da África atual, mais adequado do que o conceito de “interculturalidade”. Para os autores, embora o termo “cultura” faça referência à dimensão antropológica e o diálogo intercultural tenha a possibilidade de se realizar de maneira horizontal, são os sujeitos epistemológicos – e não as culturas – que têm a possibilidade de dialogar. Nessa interpretação, os inter-sujeitos africanos em ação é que seriam os responsáveis engajados em construir espaços de intersubjetivacção, em realizar a práxis filosófica. A educação seria o lócus privilegiado para a sua efetivação e a liberdade seria o paradigma axiológico e a condição fundamental à emancipação da própria filosofia africana. Nesse sentido, a intersubjectivacção seria um projeto de “desconstrução” e de “construção” epistêmicas da ideia de África (CASTIANO; NGOENHA, 2011). Ou seja, ao criticar a chamada “arrogância epistemológica”, exige-se que o “outro” epistêmico tenha o seu espaço na produção do conhecimento construído no mundo. Mesmo em África, o desenvolvimento da educação deve também beber em fontes inovadoras originais ou estrangeiras, desde que se constitua o objeto de uma análise crítica e de uma reflexão voltada às realidades próprias do continente (HABTE, A.; WAGAW; AJAYI, 2011, p. 817-841). Hernandes ressalta a importância de se abrir caminhos ou possibilidades heurísticas com um caráter mais descolonizador e que contribuam para uma melhor aproximação às realidades africanas. Uma das primeiras tarefas, e provavelmente a mais necessária, é “[...] o trabalho de desconstrução da universalidade da história europeia como modelo de análise e interpretação de outras temporalidades, nelas a africana incluída [...]”
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(HERNANDES, 2016, p. 37). Para auxiliar na busca pela autonomia dos processos históricos no continente, cita ser imprescindível recolocar o papel da interdisciplinaridade e dos estudos comparativos na produção do conhecimento histórico em torno do continente africano. Esse raciocínio se coaduna com a organização curricular da licenciatura maranhense. A proposta político-pedagógica da Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da UFMA não é apenas interdisciplinar, mas também indisciplinar, no sentido de que busca sair do senso comum das disciplinas historicamente trabalhadas e tidas como imutáveis. Essa busca atesta a determinação em se construir novos paradigmas, novas abordagens de análises. E isso não é pouca coisa. Configura-se também como uma ação afirmativa, isto é, trata-se de ação política e educacional direcionada à correção de desigualdades raciais e sociais, dirigidas para oferta de tratamento diferenciado objetivando corrigir desvantagens e marginalizações instituídas e conservadas por estrutura social excludente e discriminatória. Vale destacar que o desenvolvimento de ações afirmativas atende à determinação do Programa Nacional de Direitos Humanos (1996) e de tratados internacionais compromissados pelo Brasil, tais como: a Convenção da UNESCO de 1960, direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino; e a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações Correlatas de 2001. Colabora na reparação de direitos humanos alijados à população negra brasileira – nesse caso, ao direito humano à educação, reconhecendo, valorizando e afirmando a história e a cultura dessa população –, com base nas afirmações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana:
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A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações. 6
Crítica e transformação: a proposição curricular da Licenciatura implantada na UFMA tem foco nesses dois aspectos. Um currículo em disputa, uma sociedade em disputa. Currículo enquanto construção cultural. Um currículo que 1) enfrenta as amarras epistemológicas construídas pelos brutais dispositivos coloniais e 2) repele uma reprodução social balizada na desigualdade e na violência racial, seja simbólica, seja literal. Currículo como enfrentamento: sonho a ser conquistado, horizonte pretendido. Reconstrução, agenda de emancipação, liberdade epistêmica, ontológica e histórica. Somente dessa maneira será possível um processo incisivo de reeducação das relações étnico-raciais no Brasil. Reconhece-se, entretanto, que transformações culturais, pedagógicas, éticas e políticas nas relações étnico-raciais não se restringem à escola, porém, sem ela, tal processo se torna praticamente impossível, uma vez que transformações das mentalidades, atitudes e práticas perpassam a formação de longo prazo desenvolvida pelas unidades escolares e universidades. A eliminação de ideologias, comportamentos, desigualdades e estereótipos racistas é tarefa difícil, complexa e requer árduo trabalho, por isso, a necessidade de uma pedagogia de combate ao racismo e a discriminações.
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Eixos interdisciplinares e intervenção pedagógica
A estrutura político-pedagógica da Licenciatura tem uma particularidade: os eixos interdisciplinares. São eles: 1) Literatura Africana e AfroDiaspórica; 2) Cinema Africano e Afro-Diaspórico; 3) Grandes Pensadores(as) Africanos(as) e da Diáspora; 4) Políticas Antirracistas no Mundo. Cada um desses eixos é trabalhado anualmente – em forma de rodízio, cuja sequência vai do primeiro ao quarto eixo –, em conjunto com uma bibliografia obrigatória, para o trabalho em todas as áreas do conhecimento ou disciplinas oferecidas. “Literatura Africana e Afro-Diaspórica” foi trabalhado no ano inaugural da Licenciatura (2015) e retomado em 2019. No início do ano letivo, docentes e discentes decidiram quais seriam as obras escolhidas para o trabalho. Tais obras se tornaram obrigatórias para serem estudadas em todas as disciplinas do curso e foram divididas em grupos de estudantes, que tinham a missão de analisá-las de maneira aprofundada. Os gêneros literários que se destacaram foram romance, conto e poema, mas também foram escolhidos fábulas, texto dramatúrgico, quadrinhos e álbum musical – com a ressalva de que os dois últimos não são tratados como gêneros literários em muitas discussões acadêmicas. Vamos a alguns exemplos: •
ADICHIE, Chimamanda. Americanah. (romance). São Paulo: Companhia das Letras, 2014;
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ANUNCIAÇÃO, Aldri. Namíbia, não! (dramaturgia). Salvador: EDUFBA, 2012;
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MARTINS, Geovani. O sol na cabeça (conto). São Paulo: Companhia das Letras, 2018;
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MORAES, Nascimento de. Vencidos e degenerados (romance). 4. ed. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000;
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UNIÃO
DOS
ESCRITORES
AFRICANOS;
CENTRO
DE
ESTUDOS
COMPATISTAS-FLUL/ULISBOA. Pássaros de Asas Abertas: antologia de contos angolanos (conto). Luanda: A23 Edições, 2016;
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ARAUJO, Iramir; FREIRE, Ronilson; NICÁCIO, Beto. Balaiada: a Guerra do Maranhão (quadrinho). São Luís: Ed. do Autor, 2009;
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COSTA, Jefferson; CALÇA, Rafael. Jeremias: pele. (quadrinho). Barueri: Panini Comics, 2018 (vencedor do Prêmio Jabuti 2019).
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D’SALETE, Marcelo. Cumbe (quadrinho). São Paulo: Veneta, 2014.
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SOUSA, Noémia de. Sangue negro (poesia). São Paulo: Kapulana, 2016.
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MANDELA, Nelson. As mais belas fábulas africanas escolhidas por Mandela: As histórias infantis preferidas de Nelson Mandela (fábula). Lisboa: Alfaguara, 2012.
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BARBOSA, Sirlene; PINHEIRO, João. Carolina (quadrinho). São Paulo: Veneta, 2016.
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MOMPLÉ, Lilia. Neighbours (romance). Porto: Porto Editora, 2012.
Os resultados dos trabalhos com as obras literárias foram apresentados em dois formatos: ao final do primeiro semestre, os(as) estudantes, em seus respectivos grupos, expuseram um artigo científico sobre a obra que ficaram responsáveis; ao final do segundo semestre, realizaram seminários para discutir a proposta de um plano de aula ou de uma sequência didática com base no livro selecionado. Processos similares aconteceram com os demais eixos interdisciplinares. Em “Cinema Africano e Afro-Diaspórico”, os filmes escolhidos (longas-metragens, curtas-metragens, documentários etc.) foram trabalhados, em 2016, enquanto materiais obrigatórios para todas as áreas do conhecimento e disciplinas; em seguida, separados para estudo minucioso nos grupos formados por aproximadamente cinco estudantes. No terceiro eixo, “Grandes Pensadores(as) Africanos(as) e da Diáspora”, personalidades que são ou foram referências em suas épocas foram estudadas (2017), seja por meio de obras e/ou conhecimentos que deixaram, seja por meio de biografias que se debruçam acerca de suas contribuições. Destaque para as mulheres negras analisadas: Angela Davis, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento.
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Em “Políticas Antirracistas no Mundo”, quarto eixo da Licenciatura, foram estudadas e debatidas uma série de políticas públicas ou legislações que procuraram assegurar melhores condições para a população negra e/ou local ou obrigar a inserção da temática africana, local ou afro-brasileira nos currículos escolares. É valioso citar duas importantes legislações analisadas que, por coincidência, foram aprovadas em 2003, uma em Moçambique, outra no Brasil: o Plano Curricular do Ensino Básico7 e a Lei nº 10.639. Enquanto a brasileira obriga a inserção da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos escolares, o Plano moçambicano introduz a importância de se estudar o Currículo Local, destinando 20% de tempo letivo para o ensino dos saberes locais, objetivando colaborar com a incorporação da diversidade nos currículos escolares. O trabalho realizado com os eixos interdisciplinares no transcorrer do curso e durante os estágios obrigatórios em unidades educacionais atestam que esse pode ser um formato didático interessante para inserir a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na educação básica. Sem desprezar ou desacreditar diferentes formas de intervenção para essa temática, o trabalho interdisciplinar é de suma importância e os eixos são um modelo que estimula docentes e discentes a buscarem maior conhecimento sobre a área em questão. Considerações provisoriamente finais
A Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da UFMA, portanto, é uma tentativa de coletivos negros e de seus apoiadores de (re)escrever uma História que visibilize a memória, os conhecimentos e as contribuições da população negra brasileira, dos africanos(as) e das diásporas africanas no decorrer dos tempos e na atualidade. 7
MOÇAMBIQUE. Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação. Plano Curricular do Ensino Básico – Objectivos, Política, Estrutura, Plano de Estudos e Estratégias de Implementação, 2003.
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O principal desafio da Licenciatura talvez seja o movimento de responder ao desprezo dos olhares e das análises epistemológicas hegemônicas, ao mesmo tempo em que se tenta construir uma epistemologia que respeite, valorize e socialize as contribuições dos coletivos negros vitimados também por setores científicos dominantes. Sua proposta objetiva contribuir para a intervenção e questionamento das lógicas epistemicidas que excluem histórias, memórias, culturas, matrizes religiosas africanas e afro-brasileiras, bem como colaborar na superação de imaginários, estereótipos e atitudes de desrespeito, mais ainda, de espoliação, silenciamento, segregação e violência (não só) simbólica contra coletivos negros. Algumas perguntas estão no cerne do currículo desta Licenciatura: Qual é o conhecimento acumulado e transmitido aos estudantes da educação básica e do ensino superior no Brasil? Qual é a perspectiva de Ciência? De Cultura? Qual é o direito ao conhecimento que deveria ser comum a todos os coletivos? As políticas públicas educacionais devem contemplar uma pedagogia antirracista. A Licenciatura visa colaborar justamente nesse aspecto, bem como está inserida na tentativa de desenvolvimento de novas perspectivas epistemológicas. A análise do continente africano colabora para uma melhor compreensão da história do Brasil e contribui para a busca de entendimentos científicos mais rigorosos quanto aos diversos legados dos povos que compõem a humanidade. A inclusão da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos currículos escolares brasileiros se relaciona com a democracia, os direitos humanos e a inclusão de todos os sujeitos coletivos na história. Por conseguinte, o desenvolvimento da Licenciatura em questão é um exemplo de ação afirmativa que permite interrogar as lógicas universalistas de igualdade nas quais o sistema escolar se estrutura.
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O trabalho com os eixos interdisciplinares vem se constituindo em uma proveitosa possibilidade de intervenção pedagógica, sobretudo porque diversifica e valoriza recursos didáticos oriundos dos povos africanos ou de sua diáspora e estimula a equipe universitária ou mesmo a escolar no trabalho com a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. É necessário ressaltar que a Lei n. 10.639/2003 promove bem mais do que a inclusão de novos conteúdos: determina que se repensem relações étnicoraciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas8. Ao questionar os currículos essencialmente eurocêntricos presentes nos currículos (não só) brasileiros, a implantação desse curso interpela a hegemonia da narrativa histórica colonial – ou neocolonial, como queira – , enfatizando a libertação epistêmica e a afirmação de que a História da África e de suas diásporas são conhecimentos legítimos e científicos que devem ser ensinados e debatidos nos bancos escolares e universitários brasileiros. Referências BARBOSA, Muryatan Santana. A perspectiva africana na História Geral da África (Unesco). Revista Tempo, vol. 24, n. 3. Niterói, Set./Dez. 2018. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC; SEPPIR, 2004. BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no
8
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC; SEPPIR, 2004, p. 17.
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currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, e dá outras providências. CASTIANO, José P. Os saberes locais na academia: condições e possibilidades de sua legitimação. Maputo: Editora Educar/CEMEC/Universidade Pedagógica, 2013. CASTIANO, José; NGOENHA, Severino E. Pensamento Engajado: ensaios sobre Filosofia Africana,
Educação
e
Cultura
Política.
Maputo:
Editora
Educar/
CEMEC/Universidade Pedagógica, 2011. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2002. GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial e Educação no contexto brasileiro: algumas reflexões. In: GOMES, Nilma Lino (Org.). Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. HABTE, A.; T. WAGAW; J. F. Ade AJAYI. Capítulo 22 – Educação e mudança social. In: MAZRUI, Ali A.; WONDJI, Christophe. História Geral da África – África desde 1935. 2.ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2011, Vol. VIII, p. 817-841. HERNANDES, Hector Guerra. Afinal, África é patrimônio de quem? Descolonizar o conhecimento como proposta curricular. In: PAULA, Simoni Mendes de; CORREA, Sílvio Marcus de Souza (orgs.). Nossa África: ensino e pesquisa. São Leopoldo: Oikos, 2016. HOUNTONDJI, Paulin J. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, Coimbra, p. 149, mar. 2008. M’BOW, M. Amadou-Mahtar. Prefácio. In: UNESCO. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev., Brasília: 2010.
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MOÇAMBIQUE. Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação. Plano Curricular do Ensino Básico – Objectivos, Política, Estrutura, Plano de Estudos e Estratégias de Implementação, 2003. OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n. 3, 2003. SACRISTÁN, J. Gimeno. O que são os conteúdos do ensino? In: SACRISTÁN, J. Gimeno.; GÓMEZ, A. I. Péres. Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre: ARTMED, 2000. SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória D’África: a temática em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007. SILVÉRIO, Valter Roberto. Apresentação. In: UNESCO; MEC; UFSCar. Síntese da coleção História Geral da África: Pré-história ao século XVI / coordenação de Valter Roberto Silvério e autoria de Maria Corina Rocha, Mariana Blanco Rincón, Muryatan Santana Barbosa. Brasília: 2013. TOWA, Marcien. A ideia de uma filosofia negro-africana. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: NEAB-UFPR, 2015. UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Político-Pedagógico da Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros. São Luís, 2015.
4 Um relato de experiência e reflexão: contribuições do estágio supervisionado para uma (re)educação para as relações étnico-raciais Raquel dos Santos Sousa Lima 1 Yassen Fideles Ubl 2 Introdução
Este artigo, escrito a quatro mãos, apresenta reflexões sobre experiências de ensino relacionadas à implementação, no Colégio de Aplicação (CAp-Coluni) da Universidade Federal de Viçosa (UFV), das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que foram determinadas pelas Leis 10.639/2003, 11.845/2008 e pela Resolução 1/2004, do Conselho Nacional de Educação (CNE). O Colégio de Aplicação (CAp-Coluni), mais conhecido pela forma abreviada Coluni, é uma escola de ensino médio fundada em 1965 e pertencente à Universidade Federal de Viçosa, localizada nesta cidade da Zona da Mata mineira. Famoso por ter se destacado entre as melhores escolas públicas (e particulares) nacionais nos rankings do ENEM (INEP), especialmente entre 2007 e 2015, o colégio atrai anualmente centenas de estudantes da microrregião (e de outros estados) para seu (acirrado) exame de seleção, que teve uma média de 15 candidatos por vaga nos
1
Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ. Professora de História do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa (UFV). 2
Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
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últimos anos3. Entre os fatores que contribuem para que o colégio seja reconhecido como uma instituição de excelência está o incentivo institucional à qualificação do seu corpo docente, cuja maioria, hoje, é formada por mestres, doutores e pós-doutores, todos com regime de trabalho de dedicação exclusiva, no qual constam horários especiais para o atendimento das dúvidas dos estudantes. De acordo com Joana Hollerbach, a escola foi criada no mesmo contexto de institucionalização de outros colégios universitários federais, com “o objetivo de preparar os alunos para a inserção nos cursos de graduação da Universidade, dada a carência de formação dos candidatos aos cursos superiores” (HOLLERBACH, 2016, pg. 5). Segundo essa autora, tal objetivo teria ajudado a legitimar uma espécie de “mito fundador” da escola como instituição preparatória para a graduação, mito que perpassa a história do Colégio em seus 55 anos. Embora parte dos alunos ingresse na escola pensando muitas vezes na graduação, é preciso salientar que o colégio “prima pela formação integral de seus estudantes (...) por meio de uma proposta de trabalho calcada em princípios plurais que definem sua proposta pedagógica.” (BRASIL, 2018, p.7). Em 2001, o então “Colégio Universitário” alterou seu nome para “Colégio de Aplicação”, designação que salienta não apenas uma alteração nominal, mas, principalmente, uma redefinição de seu estatuto, que passa a contemplar, mais do que antes, o compromisso com a formação docente de alunos das graduações da UFV, como exposto nas “finalidades” esboçadas no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola:
3
Em 2010 e 2018 o colégio aprovou um bônus de 15% e de 20%, respectivamente, sobre a nota obtida, no exame de seleção, por alunos que cursaram todo o ensino fundamental em escolas públicas. Em 2020, alunos e ex-alunos do COLUNI fundaram o “COLUNI Antirracista”, sendo uma de suas principais pautas a defesa das cotas étnico-raciais na escola. Esse coletivo, além de promover espaços de debate e de informação, encaminhou para o colegiado da instituição uma proposta para a implementação das cotas, a qual foi acatada pelo órgão, e será aplicada para os alunos ingressantes em 2022.
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c) desenvolver projetos de ensino, pesquisa e extensão comprometidos com a melhoria da qualidade do ensino e da formação de profissionais da educação, incluindo projetos de melhoria da qualidade dos ensinos fundamental e médio em Escolas de Viçosa e da microrregião; d) proporcionar condições para realização dos estágios; e) assessorar os cursos de licenciatura mantidos pela UFV durante a realização dos Estágios Supervisionados e Acadêmicos (práticas de ensino), proporcionando aos licenciandos a vivência do cotidiano do processo educativo, em ambiente escolar, tornando-se participantes do processo da formação dos novos educadores; e f) promover a implementação de projetos que estimulem a articulação entre teoria e prática dos discentes de cursos de licenciatura. (BRASIL, 2018, p.8)
Estes objetivos pontuados nos pressupostos filosóficos do PPP respaldam as experiências que descrevemos e analisamos neste texto, baseado em um estágio supervisionado marcado por trocas do e no processo de ensino-aprendizado entre os agora autores deste relato: uma das docentes de História da escola, e o então licenciando em História pela UFV. O texto é estruturado a partir dos seguintes eixos: a descrição, feita pelo então licenciando, das atividades gerais desenvolvidas por ele no estágio, em particular a aula de “regência”; a exposição, pela docente, de práticas de ensino realizadas por ela ao longo de sua trajetória na escola; o relato do discente sobre a implementação das disciplinas de História da África na matriz curricular da Licenciatura em História na UFV e, por fim, algumas ponderações, feitas conjuntamente, sobre as dificuldades e avanços obtidos a partir de atividades como a do estágio e a de formação continuada de professores. Esta dinâmica de escrita, na qual cada autor narra separadamente suas experiências, valoriza as perspectivas particulares de cada um deles, e fundamenta-se na ideia de que a definição do sujeito que escreve impacta no entendimento da experiência apresentada. Ao mesmo tempo, a escrita em coautoria preserva os posicionamentos comuns que conectam os
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diferentes autores e atores do texto: a professora em exercício e o professor em formação. Experiências no Coluni - Ponderações sobre o estágio supervisionado
O momento de sair das salas da graduação e ingressar nas salas das escolas é tanto aguardado quanto temido pelos/as estudantes. Depois de anos de preparação e estudo, o estágio em uma escola é a consolidação da trajetória de formação de professores/as. O resultado desta experiência varia por diversos motivos, mas acreditar na possibilidade de troca entre estagiário e escola tende a ser uma constante quando pensamos em um bom estágio. Busco aqui apresentar minha experiência como estagiário no CAp-Coluni, ressaltando o esforço feito no intuito de abordar a história do continente africano em sala de aula. Minha predisposição em lecionar tópicos dentro da História da África foi bem recebida pela professora, que demonstrou interesse em realizar a tarefa em conjunto. Organizamos o conteúdo em curso - a formação do mundo atlântico no século XVI - em uma sequência didática que focou no protagonismo dos habitantes do continente africano, assim como nas próprias dinâmicas internas desse continente, e não a partir da visão europeia, como a história africana tem sido costumeiramente abordada ou, se se quiser, negada. Nosso objetivo era construir aulas e incentivar discussões que fomentassem, entre outras, a desconstrução do etnocentrismo, de preconceitos raciais e de noções equivocadas sobre o passado, bem como contribuíssem para a criação de novos paradigmas ou parâmetros educacionais para se pensar o continente africano. Pensar o estágio supervisionado como uma troca foi essencial no processo de construir pontes entre os conteúdos curriculares e os conhecimentos específicos trazidos da graduação. Para que esta integração ocorresse bem, fui estimulado a me envolver ativamente em diversas
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atividades da escola, a qual deveria ser pensada de forma ampla, e não apenas sob a perspectiva da disciplina História. Embora minha participação tenha ocorrido em diferentes momentos e de maneiras variadas, neste artigo nosso foco é a aula de regência, principalmente pelo que essa nos coloca sobre as possibilidades da formação profissional docente, inicial e continuada, para a melhor implementação da Resolução n.1 de 17 de maio de 2004/CNE. O tema da aula foi “Entre revisionismos: escravidão no continente africano”, propondo pensar as consequências dos discursos irresponsáveis que legitimam posicionamentos sem embasamento histórico e enraízam ainda mais preconceitos de diversas ordens, especialmente o racial, em nossa sociedade. A partir de discursos recentes sobre a escravatura, introduzimos conceitos historiográficos pensados para entender e distinguir os modelos de escravidão encontrados no continente africano entre os séculos XIV e XVIII (LOVEJOY, 2002). Partindo de questionamentos como, por exemplo, “os africanos se escravizavam antes da chegada dos europeus?” e “a escravização promovida por europeus na África modificou o continente?”, nós conseguimos abordar uma série de questões que envolvem desde a organização política dentro do continente africano até a perpetuação de noções racistas no Brasil de hoje. Dentre as questões tratadas, se encontram discussões atuais, que ainda mobilizam pesquisadores e educadores em sua resolução. A primeira questão que gostaria de ressaltar se refere ao cuidado que tivemos ao utilizar e problematizar o uso de uma linguagem que não simplificasse a vida de pessoas a lugares de não existência, a partir, por exemplo, da discussão do binômio “escravo-escravizado”. Entendemos a utilização do termo escravo para nomear pessoas em condições de escravidão como um problema a ser resolvido. Essa palavra, por carregar a noção de ser, torna a condição de escravidão inerente à pessoa escravizada
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(HARKOT-DE-LA-TAILLE; SANTOS, 2012). Pensando nisso, buscamos outros termos que salientassem que as pessoas em condições de escravidão, antes de tudo, são pessoas, seres humanos que outros seres humanos buscaram desumanizar. Uma alternativa foi a aplicação, em nossas aulas, do termo escravizado. Diferindo do sentido empregado da e/ou na palavra escravo, a expressão escravizado indica uma condição imposta a alguém ou a um grupo de pessoas, não sendo algo natural, isto é, inerente à pessoa que se encontra nessa situação ou posição social, assim como não simplifica sua existência à experiência da escravidão. Em outro momento, refletimos sobre as noções de ruptura e continuidade presentes na história, neste caso específico, na história das experiências de escravidão africanas e brasileiras. Muitas vezes a maneira que contamos a história associa automaticamente a escravidão às pessoas negras, reforçando a existência de uma única possibilidade de reconhecimento na história para a população negra brasileira, que se entendem e são reconhecidos como os descendentes diretos dos africanos escravizados. Esta abordagem nubla toda a história dos negros, brasileiros e africanos, em prol de uma narrativa que só nos fala sobre a escravidão ou, contemporaneamente, sobre miséria, fome, guerras, subdesenvolvimento, etc., naquele continente. Da mesma forma, a noção de trabalho “não-livre” ou “trabalho escravo” se torna sinônimo de pessoas negras no Brasil (ALBERTI, 2013). Além de incorrer na problemática apontada acima, este modo de olhar o passado muitas vezes nos impede de reconhecer continuidades nos processos históricos. Tornamo-nos incapazes de reconhecer que experiências semelhantes à escravidão ainda fazem parte de nossa vida e que deve existir um esforço por parte de nossa sociedade para erradicá-las. Assim, desconstruir os sujeitos negros como sujeitos cujo passado remonta necessariamente à escravidão é um dos primeiros passos para construir uma
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abordagem mais sensível deste processo histórico (ALBERTI, 2013), uma abordagem que não confirme os discursos utilizados no passado para oprimir e escravizar. Além disso, trabalhamos os/as escravizados/as a partir de uma ótica humanizada. Isto implica pensar nas pessoas submetidas aos moldes da sociedade escravocrata como seres humanos, dotadas de sentimentos, aspirações, conhecimentos e principalmente como capazes de agir e de modificar a realidade em que viviam. Esse entendimento é, mais uma vez, uma forma de questionar os discursos opressores da época, ainda contidos em algumas narrativas historiográficas e em muitos livros didáticos contemporâneos. Os escravizados, em nenhuma circunstância, excetuando as condições legais da época (diga-se de passagem: opressoras e racistas), foram semelhantes a animais ou mercadorias. A utilização de pessoas em funções específicas esteve intimamente relacionada à capacidade dos senhores de reconhecer nestes indivíduos seus conhecimentos e aptidões e, consequentemente, sua humanidade. Humanizando esses sujeitos conseguimos entender suas resistências e negociações. Reconhecendo que os seres humanos, independente dos lugares que ocupam, têm aspirações, sentimentos e, acima de tudo, agem em relação à realidade que os cerca, tentando minimizar os seus sofrimentos ou tentando eliminá-los totalmente, podemos construir um conhecimento sobre o passado que não necessite de vítimas ou heróis para fazer sentido. Tal maneira de proceder nos possibilita compreender que a história do continente africano de maneira nenhuma se resume à história da escravidão e à diáspora forçada para a América. Na aula de regência poderíamos ter abordado qualquer outro aspecto da história do continente africano, uma história tão rica e vasta quanto qualquer outra, que passamos a ter acesso à medida que a crítica ao eurocentrismo se refina e torna-
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se mais contundente, e que cresce o número de pesquisas na área. Por se tratar de um assunto relativamente recente e presente na base das relações sociais de nossa sociedade, exige sensibilidade, tato, reflexão e conhecimento por parte dos/as professores/as. O debate sobre a escravidão no continente africano com os estudantes da primeira série do ensino médio do Coluni nos permitiu explorar a pluralidade das relações sociais existentes naquele continente e também no Brasil, buscando nos distanciar cada vez mais de um ponto de vista eurocêntrico. Acima de tudo, nos permitiu tentar desconstruir visões e discursos incoerentes com os estudos sobre o passado, sem recorrer ao apelo sentimental ou à imposição de modos únicos de olhar para a história. Esta experiência, relatada e sistematizada em meu trabalho de conclusão da licenciatura (UBL, 2019), só foi possível graças ao contato da escola com a universidade. Por ser uma atividade de estágio, a orientação da professora foi crucial para o sucesso das dinâmicas em sala de aula, contribuindo com a didática e a experiência que só o tempo pode conceder. Em contrapartida, as bases das discussões travadas no conteúdo ministrado vieram de disciplinas (com temática voltada para História da África e História Afro-brasileira) e da participação em eventos e grupos de estudos promovidos pelo departamento de História da UFV. Experiências no Coluni - Reflexões de uma docente
A partir do relato trazido pelo então licenciando sobre o estágio que construímos juntos, apresentarei algumas reflexões sobre minhas experiências didáticas como professora de História no CAp-Coluni. Embora a resolução federal relacionada à educação para as relações étnico-raciais e ao ensino da história e cultura africana e afro-brasileira seja de 2004, a preocupação com o ensino da temática racial e com as questões que ela suscita em nossa sociedade já era algo corrente para esta docente. Ocorre
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que as práticas pedagógicas envolvendo tais debates aconteciam, na maioria das vezes, a partir da exposição de conteúdos que tratavam da escravidão: da implementação do processo de escravização de africanos; das diferentes formas de resistência; do movimento abolicionista e da colonização nas Américas. Como exemplo, relato uma aula que ministrei para várias gerações de alunos sobre o “tráfico de escravos” e/ou “tráfico negreiro”, para usar os termos que usava à época. Nela era exibido um trecho do filme Amistad,4 mais especificamente uma cena sobre a travessia atlântica, que começava com a captura de africanos e o embarque na Fortaleza de Lomboko (hoje Serra Leoa). Era uma sequência de dez minutos cujo roteiro retrata a violência em suas múltiplas formas, com castigos físicos, estupros, suicídio, homicídios, e que finalizava em um mercado público de Cuba, no qual estas pessoas eram negociadas por homens brancos e mestiços. Ao fim da exibição, as reações dos alunos variavam entre a troca de olhares assustados, o silêncio, a expressão de indignação e, às vezes, o choro. Embora eu retomasse a aula advertindo que o filme fosse uma representação de um determinado período a partir da ótica do cinema, muitas vezes ele era visto por alguns estudantes como uma ilustração da forma como de fato as travessias teriam ocorrido. Depois, eu apresentava a música Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, d’O Rappa, cuja letra aborda a situação vivida pela juventude negra em relação aos abusos policiais e o racismo exercido pela polícia no Brasil, principalmente nas periferias. O objetivo, ao fazer uso do recurso cinematográfico e da canção, era chamar a atenção dos discentes para a condição imposta aos povos
4
Amistad. Direção: Steven Spielberg, Produção: David Franzoni. EUA, 1997.
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africanos trazidos para o Brasil, dando visibilidade para os modos de opressão e para as diferentes formas de violência exercidas sobre os negros africanos e seus descendentes, os negros brasileiros. Acreditava que estes elementos ajudariam os alunos a estabelecerem críticas sociais, relações
processuais
e
conexões
entre
escravidão/racismo/
discriminação/criminalização da população negra e a denunciarem e, principalmente, combaterem posturas racistas. Após conhecer algumas discussões sobre o ensino de história e as culturas africana e afro-brasileira por meio do ex-estagiário, percebo como eram problemáticas tais escolhas didáticas. Não há dúvidas de quão violento este processo histórico foi na realidade, mas a utilização de representações desta violência em sala de aula incorre em outros dilemas. Conforme ressaltado pelo coautor desse texto em uma de nossas conversas, neste tipo de abordagem, um assunto tão sensível é transcrito na forma de horror, e a violência e o sofrimento se tornam sinônimos da imagem retratada. Neste caso, sofrimento e violência se tornam o ‘ser negro’. O humano se torna a vítima. Fica nítido que outras formas de abordar questões sensíveis como a escravidão se mostram muito mais eficazes e menos traumáticas.5 Não que os aspectos humanos ou as diferentes experiências culturais não fossem tratados nas minhas aulas. Iniciativas visando à valorização da cultura negra e de sua contribuição na construção do Brasil também eram realizadas, ainda que, como aparecia nos livros, fossem pensadas em termos de manifestações culturais negras, como a capoeira, o lundu, o samba e alguns poucos poemas e escritos de autores negros, sobretudo abolicionistas. Mas a experiência fundante continuava a ser a escravidão, um
5
Essas abordagens são trabalhadas por Verena Alberti (2013) em seu texto “Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira”.
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problema sinalizado no Parecer do CNE/CP/03/2004 (BRASIL, 2004a. p.9). O debate sobre a questão étnico-racial parecia ser mais fácil de se fazer que o ensino da História da África propriamente dita, sobretudo porque esta, quando aparecia no currículo escolar, era relacionada ao surgimento do homem, ao Egito, à escravidão, ao “imperialismo europeu” do século XIX ou, no máximo, aos processos de descolonização. As perspectivas de análise da diversidade histórica africana, quando ocorriam, se resumiam à exposição das diferenças entre povos de origem iorubá e banto, mesmo assim sob o eixo da escravização. Muito menos o continente africano era concebido a partir de seus processos históricos, o que levava muitos alunos a indagarem, quando o tema era a escravidão atlântica, os motivos de os “próprios africanos capturarem africanos para vender”, questões que a aula de regência descrita acima pelo ex-estagiário no subtítulo anterior ajudou a responder. Este estágio me propiciou, como professora supervisora, refletir sobre as experiências anteriores, de forma a identificar situações e abordagens que precisavam ser repensadas. Este é um aspecto que nós, autores, queremos destacar: a importância da formação docente nos cursos de licenciatura e a da formação continuada de professores da educação básica para que, de fato, seja possível a implementação das prerrogativas e orientações da Resolução 01 do CNE/CP de 17 de junho de 2004. Ponderações como as tratadas na aula de regência do estagiário não constavam nas discussões tecidas na universidade durante minha graduação. Licenciada pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 1997, tive um curso fortemente marcado por professores que pesquisavam a documentação sobre a escravidão na Zona da Mata Mineira. Minhas memórias sobre a temática afro-brasileira e africana na academia aparecem relacionadas basicamente à escravatura, em acentuados debates sobre os
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aspectos teóricos econômicos do “Escravismo Colonial”, de Jacob Gorender, e do “Antigo Sistema Colonial”, de Fernando Novais, e o ponto de vista de historiadores da História Econômica e da Social. Embora naquele momento alguns trabalhos também focalizassem o estudo das populações e das famílias escravas, a ótica da objetificação dos negros como mão de obra ou “coisa” prevalecia. Para usar expressões muito usadas por uma professora da graduação que pesquisava processos judiciais do século XIX, “cativos”, “bens”, “mercadorias”. A contribuição histórica e cultural da população negra, africana ou afro-brasileira, foi tema relegado a poucas disciplinas que cursei, mesmo assim oferecidas por outros departamentos, como o de Ciências Sociais. Formada por esta geração de professores, ao ingressar como docente no ensino básico, busquei reproduzir, como havia “aprendido”, a denúncia da escravidão, do racismo dela decorrente e da opressão das populações negras e indígenas como algo que deveria ser debatido e combatido nas aulas de História. Esta formação, no entanto, remonta à minha socialização na História Escolar do “primeiro e segundo graus”, no contexto das lutas pela redemocratização dos anos 1980, quando se versava sobre as “injustiças históricas” a partir de modelos teóricos interpretativos dos diferentes “modos de produção”. Mesmo período em que as professoras de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e de Moral e Cívica reproduziam em suas aulas conteúdos tratando da “integração das raças” no Brasil. Teço esta retrospectiva da formação em diferentes níveis educacionais a fim de tentar lançar luz na compreensão de minha atuação docente na educação básica. Maurice Tardif (2002, pg.213) salienta que “os professores utilizam constantemente seus conhecimentos pessoais e um saberfazer personalizado, (...) fiam-se em sua própria experiência e retêm certos elementos de sua formação profissional”. Este filósofo chama atenção para
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o fato de que os professores estruturam seu saber em bases heterogêneas, a partir de diferentes estímulos, os quais devem ser levados em conta na análise da formação profissional. A partir das contribuições deste autor, retomo meu percurso acadêmico a fim de refletir como, em minhas aulas no ensino médio, passei a tratar a questão racial e a da história africana e da cultura afro-brasileira a partir de bases mais amplas que a escravidão. Foi, sobretudo, a partir de meu ingresso no mestrado em História Social, em 2004, na Universidade Federal Fluminense, que comecei a refletir acerca do papel da diáspora africana na construção do mundo atlântico, designação semântica que sugere implicações históricas bem mais relacionais entre Europa, África e América. As discussões realizadas na disciplina “Cultura Negra e Cultura Afro-Brasileira na Historiografia”, oferecida por Martha Abreu foram fundamentais para que eu pudesse repensar minhas práticas docentes no ensino básico. A cultura negra no Brasil deixou de ser um mero “reflexo” da escravidão, ou uma “manifestação cultural”, e passou a ser considerada como elemento fundante e constitutivo da sociedade brasileira, pensada em sua pluralidade. Nesse sentido, também foram importantes as leituras de autores da História Social e da História Cultural, por sua abertura para os campos da atuação dos sujeitos na História, da linguagem, da história da cultura, dos significados na ação social. As mudanças nas práticas pedagógicas ganharam mais força ainda após o doutorado (2014) em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ), pela instrumentalização teórica que o curso oferece para pensarmos conceitos centrais para a educação das relações étnico-raciais. Passei a discutir a necessidade de desnaturalizar o que nos é familiar (VELHO, 2013) e a questionar, por exemplo, o uso corriqueiro de expressões racistas, visando corrigir “posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação” (Brasil, 2004b).
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Comecei ainda a dar ênfase na discussão sobre cultura. Lembro-me dos rostos espantados e curiosos de vários estudantes do Coluni, e também da graduação, quando passei a utilizar, nas aulas de “descobrimento ou achamento do Brasil?”, o funk “Não foi Cabral”, lançado em 2015 pela MC Carol de Niterói. Embora as festas desses jovens costumem ser embaladas por este estilo musical, concebê-lo como um documento a ser usado nas aulas de história era algo quase impensável para eles. Como fonte, ela nos permite pensar nas relações étnico-raciais não apenas descritas pela letra da música, mas nos preconceitos envoltos nas condições de sua própria produção, já que a autora/cantora é uma mulher, negra e favelada. Percebo que a preocupação para com a Educação das Relações ÉtnicoRaciais estava bem mais presente em atividades didáticas do que as questões concernentes à História da África. Embora eu conhecesse as leis 10.639 e 11.645, o fato de não ter tido uma educação formal nestas áreas durante a graduação era um limitador para minhas atividades. Encarando o desafio, desde 2014 passei a levar, ler e discorrer sobre tais leis em sala de aula, comentando com os estudantes que o livro didático adotado tinha capítulos inteiros dedicados às Revoluções Francesa e Inglesa, em detrimento de pouquíssimas páginas sobre povos originários e sobre África. A partir de 2015, passei a utilizar o vídeo “O perigo de uma história única”, da nigeriana Chimamanda Adichie, para incentivar o debate sobre os estereótipos relacionados ao continente africano. Começava, e ainda começo esta aula fazendo uma técnica conhecida como “tempestade de ideias”, estimulando e anotando no quadro as palavras que mais vinham à mente dos estudantes quando eu falava em “África”. As mais citadas costumavam ser: Aids, Ebola, pobreza, miséria, fome, guerra, savana, deserto. Em 2016, salvo engano, depois de o colégio receber livros do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/ Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE Temático, passei a ter acesso maior a obras sobre
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História da África e da Cultura Africana e Afro-brasileira. O material, que ainda utilizo, inclui tanto livros mais teóricos, quanto manuais com sugestões didáticas como, por exemplo, Olhar a África: fontes visuais para sala de aula, de Regina Claro (2012). No entanto, o fato de se ter acesso à literatura historiográfica distribuída aos docentes pelos órgãos públicos responsáveis pela educação básica para os auxiliarem no estudo e no ensino do tema não é suficiente para suprir as carências de formação acadêmica sobre História da África. Nem sempre a reeducação para a história dos povos e países do continente africano passa por âmbitos acadêmicos formais, por meio de orientações normativas e/ou legislação específica, de livros ou de eventos específicos sobre o tema. Algumas vezes a reeducação supracitada passa por processos mais amplos, que entrecruzam trajetórias pessoais e profissionais. No ano de 2015 conheci um casal de professores recém-ingressos na UFV, com os quais passei a conviver. São pesquisadores de questões raciais, ações afirmativas, movimento negro, antirracismo, diversidade racial, mídia e racismo. As conversas que travava com eles fora das pilastras da universidade foram (e ainda são) cruciais para este processo de reeducação e de reflexão sobre práticas pedagógicas docentes no ensino básico e nos cursos de graduação das Ciências Humanas da instituição6. Em 2017, quando ainda não existia a disciplina História da África no Curso de História da UFV, um estagiário planejou sua aula levando “fontes literárias com a intenção de repensar, junto com os alunos, a relação entre a história e a memória da África e a importância da tradição oral na transmissão e conservação do passado” (BUENO, 2018). Foi por intermédio dele que conheci o termo “escravizado”, e passei a refletir sobre as implicações não apenas semânticas do uso da expressão “escravo”. 6
Agradeço ao professor Sales Santos pelas conversas e contribuições ao presente artigo. Indico, ainda, a discussão que SANTOS (2019) faz sobre a aplicação das leis 10.639 e 11.645 no Curso de Ciências Sociais da UFV.
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Com a entrada de um professor efetivo de História da África e das Relações Étnico-Raciais na UFV, em 2018, começou-se a construir uma interlocução que tem se configurado como um ponto de inflexão em minhas práticas pedagógicas. O docente recém-ingresso promoveu o evento de extensão “Formação continuada de professores para ensino de História e cultura africana e afro-brasileira” ao longo do ano 2019, que deu origem ao livro que o leitor tem em mãos. O projeto, entre outras atividades, envolveu uma série de palestras voltadas para professores em formação e em exercício na educação básica. Algumas das discussões realizadas pelos palestrantes foram incorporadas em minhas aulas, tangenciando debates sobre padrões estereotipados de beleza, protagonismo literário de escritores negros, espacialidade e cultura negra, etc. Ainda em 2018, o estagiário que é coautor deste artigo trouxe novamente a questão africana para as aulas de regência. Conforme relatado na primeira parte deste texto, o tema escolhido para sua aula foi “Entre revisionismos: escravidão no continente africano”, porém, a contribuição do então licenciando foi muitíssimo maior que as citadas até agora. Uma das dinâmicas que costumo adotar ao orientar estágios supervisionados é incentivar os graduandos a fazerem intervenções mais frequentes durantes as aulas em geral, e não apenas naquela da regência. Foi ao longo de diferentes aulas que outras proposições teóricas, metodológicas e historiográficas concernentes à história da África foram colocadas ou aprofundadas pelo estagiário, algumas até então desconhecidas pela docente. Estes dados contemplam aspectos econômicos, sociais e culturais de sociedades africanas diferenciadas, os quais costumavam ser referenciados, na fala do estagiário, às leituras e discussões feitas em disciplinas de História africana e afro-brasileira. Para entender melhor o impacto da introdução destes temas na formação curricular dos graduandos, apresentaremos um breve panorama
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do processo de adequação da UFV às orientações previstas nas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, sob a perspectiva do então estagiário e graduado no curso de História. A inserção das disciplinas de História da África na UFV e a possibilidade de impactos imediatos
O curso de História da Universidade Federal de Viçosa consolida-se com quase vinte anos formando tanto licenciandos quanto bacharéis. Focado inicialmente em atender a demanda por professores da Zona da Mata mineira, o curso cresceu em escopo e proporções. Com apenas onze professores efetivos, tem um Programa de Pós-Graduação em nível de mestrado profissional, diversos laboratórios e grupos de estudo e pesquisa. Apesar do comprometimento em oferecer uma formação ampla e de qualidade, foi apenas quinze anos depois da promulgação da Lei 10.639/2003 que o departamento passou a contar com um professor cuja formação acadêmica é focada em História da África. Frise-se que esta característica, isto é, a recente contratação de docentes para ministrar a disciplina História da África, não é específica da UFV. Anderson Oliva (2006), ao realizar um panorama sobre o ensino de História da África nos cursos de formação (inicial) de professores, assinalava pontos positivos sobre a mudança para uma nova geração de profissionais interessados neste campo de conhecimento. Segundo esse pesquisador, professores/as e pesquisadores/as formados nos anos 2000, ao que tudo indica, tiveram mais acesso às discussões e/ou oportunidades de pesquisa e trabalho relacionadas à história do continente africano (OLIVA, 2006). Apesar da inclusão deste campo de pesquisa e estudo em alguns espaços de ensino superior nos últimos anos, o avanço, ao que tudo indica, tem sido lento e muito recente, como se comprova pelo caso da UFV. É
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pensando nesta demora que este texto se propõe a demonstrar a assertividade desta inserção e seu impacto positivo no cenário local. As discussões sobre história e cultura africana e afro-brasileira eram contempladas de forma tímida durante minha formação acadêmica no curso de História da UFV, antes da contratação de um docente para ministrar História da África em 2018. Antes da chegada desse docente, meus outros professores eram receosos em tratar de uma temática cuja experiência deles não abrangia. Questão semelhante foi apontada por Oliva (OLIVA, 2006), ao se referir aos professores da educação básica hesitantes em tratar um conteúdo que não fez parte de sua formação, conteúdos que, por serem negados ou embebidos em visões eurocêntricas ou distorcidas, se transformaram numa barreira a ser transposta dentro do ensino escolar. Graças às mudanças graduais que vêm acontecendo na percepção e no incentivo à abordagem destes conteúdos, cujos maiores exemplos são as Leis 10.639 de 2003 e a 11.645 de 2008, se torna cada vez mais possível ultrapassar esta barreira. Reconheço que as dificuldades são reais e em muitos casos incontornáveis, mas o esforço é recompensador. No meu caso, como estudante que, ao longo dos anos de 2018 e 2019, fez parte das primeiras turmas das primeiras disciplinas de História Africana e Afrobrasileira ministradas no curso, fui um beneficiário direto do processo de adequação dos cursos superiores às normas colocadas desde 2003. Se a demora das disciplinas voltadas para História Africana e Afrobrasileira em chegar na UFV é inegável, o momento desta chegada não poderia ter sido mais oportuno. Com a atualização das matrizes curriculares do curso de História, tanto da licenciatura quanto do bacharelado, concluída em 2019, as disciplinas de História da África foram integradas ao currículo obrigatório. Um fato importantíssimo, que diz respeito não só ao processo de adequação a uma norma vigente, mas também à visão do
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departamento sobre o curso de História que se quer construir, e o perfil dos profissionais e cidadãos por ele formados. O caráter de novidade certamente não pode ser ignorado quando se pensa o interesse dos alunos que se matricularam naquelas disciplinas. Colegas de sala que, como eu, pouco sabiam, mas muito queriam aprender sobre uma história que para nós se destacava pelas lacunas, silêncios e omissões, intencionais ou não. Acredito que esse interesse pelo desconhecido pode, e deve, ser explorado pelos professores em sala de aula, mas aqui devo salientar que a curiosidade a ser explorada precisa se distanciar do apelo ao exótico, chave de leitura ainda presente nas mídias e em alguns livros didáticos. O desconhecido a que me refiro se trata de uma outra perspectiva sobre a narrativa padrão da História, que enfoque outros sujeitos, lugares e processos históricos. Uma interpretação que proponha o conhecimento sobre a História da África como oportunidade para rever e repensar a história do mundo, em vez de tratá-la como conteúdo isolado, como vemos na maior parte dos livros didáticos. Uma nova leitura que recusa um caminho único: o eurocentrismo, tema que aqui não pudemos explorar ante ao espaço que temos para produzir este artigo. O importante, diante de nossos objetivos neste texto, é enfatizar que o impacto das disciplinas de História da África dentro do curso de História da UFV foi rapidamente percebido, tanto pelos professores quanto pelos alunos. O próximo passo desta cadeia seria repassar essas mudanças para a comunidade. A primeira turma a ter aulas de História da África em sua matriz acaba de se formar, professoras e professores cuja formação apresenta menos lacunas que as gerações graduadas há quinze ou até mesmo cinco anos. Ainda assim, outro tipo de conexão pode ser construído de modo mais imediato e dentro do processo de formação dos graduandos: os estágios supervisionados.
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Esses se configuram como forma direta de interlocução entre as discussões da academia e a realidade das escolas, favorecendo um processo de aprendizagem mútua entre professores em formação e professores já atuantes. Utilizar dos estágios para expandir as discussões nascidas dentro dos cursos de graduação é uma possibilidade real de acelerar o processo de implementação, nas escolas, das proposições das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, determinadas pelas Lei 10.639/2003 e 11.645/2008, bem como pela Resolução 1/2004 do CNE. Minha passagem pelo CAp-Coluni deu origem a esta percepção. Tive a possibilidade de realizar uma experiência realmente significativa ainda na graduação, a partir de um estágio que propiciou a construção de conexões transformadoras para todos os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Essa oportunidade só foi possível graças à abertura da professora supervisora do meu estágio, com a qual escrevo este artigo, e a do próprio colégio, que me acolheram como estagiário. Neste sentido, acreditar na capacidade de troca e de cooperação entre a universidade e a escola é essencial. Ainda que estas trocas estejam diretamente relacionadas às experiências individuais, é possível pensar, a partir dos apontamentos aqui apresentados, que a constituição de uma ação em âmbito coletivo que abarque, com seus diferentes sujeitos, as comunidades escolar e acadêmica, pode ser um esforço capaz de gerar frutos para toda a sociedade. Considerações finais
Diante do que foi exposto, ponderamos a potencialidade dos estágios supervisionados tanto na formação de novos docentes, quanto na continuidade da formação profissional de professores já “experientes”, como é o caso da coautora deste artigo. Embora os licenciandos, teoricamente, procurem as escolas para “aprenderem” com os docentes, o estágio se
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configura como um espaço muito especial de troca, que articula diferentes níveis do processo de ensino-aprendizagem, triangulando conhecimento histórico acadêmico, formação docente e história escolar. Ouso argumentar que, depois de décadas em sala de aula, receber alunos que tenham cursado disciplinas como História da África e das Relações Étnico-Raciais tem sido algo particularmente transformador, se configurando como uma espécie de formação continuada em História. Certamente ainda há muitos desafios a serem superados, como o fato de em muitos manuais didáticos recentes a história do continente africano ainda ser pensada como um apêndice da história mundial. Um conteúdo que se insere no modelo de história quadripartite, muitas vezes factual, que não nos proporciona uma reflexão mais abrangente sobre o modo como a história é contada. É necessário buscar interpretações da história onde o continente africano, os africanos e seus descendentes na diáspora também tomem lugar de protagonismo e consequentemente saiam das periferias da história cânone. Iniciativas deste tipo podem ser encontradas em questões das provas da Olimpíada Nacional em História do Brasil (Unicamp), que têm tratado a História afro-brasileira a partir de conexões cada vez mais complexas. Nestes anos de trabalho e ensino no CAp-Coluni, as transformações são visíveis e, ainda que os cenários futuros para a educação no Brasil sejam preocupantes, em razão da atual conjuntura político-cultural, as expectativas positivas ainda têm lugar no imaginário dos educadores. No caso da professora que ora escreve, os exemplos são muitos: meus alunos têm pensado menos em escravos, cativos ou vítimas, e gradualmente têm visto a história de experiências como a escravidão a partir de uma ótica em que os/as escravizados/as são agentes sociais, seres humanos, e não “peças” ou “coisas”; uma geração de alunas e alunos negros que tem se reconciliado cada vez mais com sua autoestima, uma questão pontuada
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por Nilma Lino Gomes ao falar da necessidade de afirmação dos saberes estéticos, pensados em relação à corporeidade negra (GOMES, 2011); a pergunta “funk é cultura?” quase não tem o mesmo impacto (negativo) quando feita para as turmas de primeira série, e alguns jovens, com raras exceções, até mesmo se espantam em relação ao porquê de ela ser feita, o que é interessante para pensar a formação que os alunos estão tendo nas séries finais do ensino fundamental; embora na tempestade de ideias sobre o continente africano feita em 2020 tenham aparecido várias qualificações negativas sobre esse continente e seus povos, expressões como “Pantera Negra”, “orixás”, “etnias”, “Império de Gana e Mali” também surgiram, e esperamos que num futuro não muito distante as expressões negativas já não façam mais parte das colocações dos alunos; além disso, a presente docente não utiliza mais aquela cena do filme Amistad, fato que nos lembra que nós professores/as estamos sujeitos a incorporar visões de mundo distorcidas e/ou estereotipadas, mas também às “transformações e sedimentações sucessivas ao longo da história de vida e de uma carreira; história e carreira que remetem a várias camadas de socialização e de recomeço” (TARDIF, 2002. p. 237). Reconhecer o lugar do qual falamos também é parte essencial na construção de uma educação para as relações-étnicos raciais. Neste caso, demarcar nossos lugares de fala, uma mulher branca, a professora, e um homem negro, o ex-estagiário, faz toda diferença. Todos, sem exceção, nos expressamos através de referenciais, vivências e experiências sociais e racialmente localizadas. Somos produtos de uma mesma sociedade racializada, ainda que ocupemos lugares diferentes dentro das hierarquias formadas. Ter noção disso nos ajuda a compreender que ensinar História da África, ou História Afro-brasileira, não diz respeito a estabelecer preferências ou sujeitos alvos dentro das salas de aula. Ensinar História da África e História afro-brasileira diz respeito a uma reconciliação com um
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passado negado nos quadros da história escolar (KALY, 2013). Diz respeito a um embate generalizado contra o racismo e seus efeitos em nossa sociedade, efeitos que atingem especialmente a população negra, mas também impactam a vida da parcela branca da sociedade brasileira. O combate ao racismo também é ou, caso se queira, também deve ser pensado de forma sistêmica, e a educação e os currículos escolares como campo de disputa têm papel fundamental em um processo de reeducação lento e difícil (GOMES, 2012). O ponto de interseção entre as experiências narradas neste capítulo e a realidade dos professores é a vivência em sala de aula. Sabemos que na maioria das aulas do ensino básico a palavra África só aparece quando o tema da escravidão é tratado em história do Brasil. Diante disso, escolhemos compartilhar uma outra perspectiva sobre essa temática e mostrar que, apesar de ser um tema “batido” nos currículos e de carregar consigo um peso negativo, é possível discutir o mundo escravocrata brasileiro ou, caso se queira, o modo de produção escravista no Brasil (GORENDER, 1987) de forma diferente e até mesmo divergente do ponto de visto dos escravocratas, e por conseguinte todos os demais conteúdos do currículo escolar, de maneira emancipatória (GOMES, 2012). Nossa intenção é demonstrar, através do relato de uma experiência, como é possível reeducar nossas concepções e percepções sobre o processo de aprendizagem. Os outros capítulos deste livro mostram que as possibilidades para trabalhar a História da África e suas ramificações são muitas, e certamente vão muito além do que tratamos aqui. São oportunidades para que professoras e professores, experientes ou recém-formados, de primeira viagem ou velhos de casa, possam, assim como sinaliza a renomada pesquisadora e professora Petronilha Beatriz Gonçalves Silva, contribuir no processo de desfazer, refazer e fazer uma ação efetiva em prol de um ensino para as relações étnico-raciais (SILVA, 2011). Esperamos que, assim como nós que
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aqui compartilhamos nossa experiência, os leitores possam, à luz de novas perspectivas e conhecimentos, reeducar suas práticas dentro e fora das salas de aula, em busca de uma educação que, ao invés de nos prender, nos emancipe. Referências ALBERTI, Verena. Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira. Ensino de história e culturas afro-brasileiras e indígenas. 1ed. Rio de Janeiro: Pallas, v. 1, 2013. BRASIL, 2004a. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP/003/2004 de 17 de junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicoraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível em:
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5 Guerra Fria Global: uma discussão para a descolonização do ensino Raissa Brescia dos Reis 1 Taciana Almeida Garrido de Resende 2 Introdução
Quando o termo Terceiro Mundo foi utilizado por Alfred Sauvy, no artigo intitulado “Trois mondes, une planète”, de 1952, ele chamou a atenção para o fato de que essa parte mais ou menos esquecida da equação global era objeto de disputas que tomavam forma no pós-Segunda Guerra Mundial. Comparando o Terceiro Mundo ao Terceiro Estado, cuja rebelião levou à Revolução Francesa no final do século XVIII, Sauvy partia da perspectiva ocidental, do dito Primeiro Mundo, para uma advertência: investir mais na corrida armamentista do que no desenvolvimento dos países “subdesenvolvidos” poderia ser fatal para qualquer tentativa de influência do mundo capitalista, “pois, enfim, esse Terceiro Mundo ignorado, explorado e desprezado como o Terceiro Estado, quer, ele também, ser alguma coisa” (SAUVY, 1986, p. 83). Nesse pequeno texto, que é provavelmente a primeira vez em que o termo “Terceiro Mundo” foi utilizado, nota-se como os primeiros anos da Guerra Fria já contavam com a representação do conflito como um palco ocupado por dois grandes protagonistas, dois grandes blocos: de um lado, o Ocidente, capitalista, democrático, encabeçado pela economia
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Doutora em História Social da Cultura UFMG, Professora Adjunta do Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2
Doutoranda em História e Culturas Políticas UFMG, Professora Instituto Federal de Minas Gerais.
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estadunidense, o Primeiro Mundo; do outro lado, o Oriente, comunista, dominado pela potência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o Segundo Mundo. Vê-se também um certo vazio de representação sobre o papel político de territórios que não se encaixavam em nenhum desses dois blocos na formação de uma nova ordem mundial. A definição de Terceiro Mundo vinha, nesse contexto, como uma heterodenominação que, sugestivamente, era perpassada tanto por ideias de passividade quanto de ação. De certa forma, a análise de Sauvy levava o leitor a uma ideia de que esse conjunto de países era o “resto” do mundo, aquela parte a ser desenvolvida e reivindicada por um ou outro grupo de um conflito bipolar. Ao mesmo tempo, porém, na comparação com o Terceiro Estado, estava a afirmação latente de um potencial irruptivo, de um poder político inesperado e desconhecido que deveria ser controlado. Essa ambiguidade que caracterizava o conceito de Terceiro Mundo, remontando aos primeiros anos da década de 1950, esteve presente também em seus usos posteriores e imprevistos. O Terceiro Mundo foi apropriado e transformado por dentro por grupos estatais e não estatais, agentes coletivos e individuais, que entenderam a definição como um caminho para projetos e alianças que prescindiam do controle e da tutela de algum dos lados da polarização mundial. Inseridas em abordagens recentes que renovaram o campo dos estudos sobre o cenário político, social e intelectual do pós-Segunda Guerra Mundial, essas ideias enlaçam o conceito de “Guerra Fria global”. Esse conceito, bem como algumas de suas potencialidades, são o tema desse capítulo cujo objetivo central é promover uma discussão que possa servir como subsídio, principalmente em sala de aula, para a construção de um pensamento histórico e de um ensino de história mais crítico, amplo e aberto à complexidade sobre o período. Ao fazermos referência à necessidade de atenção à complexidade no ensino e estudo de história, estamos mobilizando o trabalho de Pierre
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Boilley e Ibrahima Thioub, que expõe a necessidade de escrever histórias sobre a África que procurem apreender as diversas facetas de suas sociedades, sujeitos, temporalidades e acontecimentos históricos. Os autores insistem sobre a importância de fugir de estereótipos forjados sobre o continente, inclusive por meio da atenção aos aspectos que compõem as narrativas negativizantes sobre sua população, como a própria negação de sua história. E eis aqui uma tentativa de contribuir para esse caminho, aplicando-o para a África, mas também para outras regiões do globo (BOILLEY; THIOUB, 2004) Verificado o forte eurocentrismo ainda existente nas ciências humanas, assim como na grande mídia, propõe-se a criação de repertórios teóricos para (re)fundar o lugar de práticas e representações do Terceiro Mundo - mais ou menos negligenciadas em narrativas oficiais sobre o período - no repertório escolar sobre a Guerra Fria e, de forma mais ampla, sobre a modernidade. A provocação de situar esse evento para além do domínio da história regional europeia fantasiada de história universal é um exercício de promoção de uma cultura histórica da diversidade, aberta às disputas e negociações dos agentes históricos em seu tempo. O capítulo encontra-se dividido em dois tópicos: uma discussão da historiografia sobre a Guerra Fria desde a década de 1960, por um lado, e uma introdução a conteúdos referentes à ação de agentes não estatais e estatais que se identificavam com a denominação de Terceiro Mundo, por meio de um percurso por eventos e congressos internacionais realizados nas décadas de 1950 e 1960. Não temos a pretensão de propor caminhos para questionar os mecanismos pelos quais as contranarrativas sobre a criação de uma nova ordem mundial no pós-Segunda Guerra Mundial puderam ser aplainadas ou conformadas à versão da bipolaridade. A ideia não é negar a natureza dicotômica das dinâmicas e interações entre parte dos atores inseridos na
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Guerra Fria, mas promover uma reflexão sobre a amplitude das agências históricas envolvidas na conformação do conflito. Isso se dá, marcadamente, pela adoção de uma perspectiva que considera atores representantes de países inseridos no chamado Terceiro Mundo como construtores de significados, práticas e organizações com papel efetivo nos caminhos que os conflitos tomaram ao longo da segunda metade do século XX. É nesse sentido, por exemplo, que o conceito de Terceiro Mundo é utilizado aqui. Embora ele tenha sido alvo de várias críticas no final do século passado, principalmente devido às ambiguidades nele contidas desde seu primeiro uso registrado, tratou-se de uma categoria a partir da qual foram questionados, negociados, apropriados, transformados e construídos projetos de organização global, para além do eixo Norte. Cabe esclarecer também que o termo “Terceiro Mundo” é mantido nessa reflexão por fazer sentido para os atores estudados, além de ressaltar a presença das assimetrias de poder mesmo durante a apropriação de linguagens e repertórios políticos legitimados, como o das Relações Internacionais. O uso de Terceiro Mundo se dá, pois, enquanto “categoria nativa”, à luz da reflexão do historiador Frederick Cooper, em Colonialism in question, de 2005, que propõe o uso de conceitos criados no interior das temporalidades estudadas, como forma de evidenciar as especificidades de apropriações, negociações e disputas então vigentes (COOPER, 2005, p. 18). Finalmente, no interior dessa perspectiva, dialogamos com a ideia de um conhecimento histórico “decolonial”, na esteira de trabalhos como o de Walter Mignolo, “Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade”, publicado no Brasil em 2017, em que se apresenta os conceitos de colonialidade e decolonialidade, retirados da obra de Quijano, iniciada durante a década de 1990 a partir de análises sobre a forma como se organiza o poder nas sociedades latino-americanas. Segundo Mignolo: “A colonialidade
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nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma dimensão constituinte, embora minimizada” (MIGNOLO, 2017, p.2). Ao lado da modernidade, valorizada e enaltecida como símbolo de superioridade do mundo ocidental, viria a colonialidade, seu lado oculto, porém fundamental. Essa dualidade estaria impressa na forma como a história e as ciências humanas contam, explicam e analisam o mundo social, ressaltando narrativas eurocêntricas, aplainando complexidades e disputas e, assim, perenizando a colonialidade, expressa no próprio fazer científico. Essa configuração imperial que o Ocidente deixou como herança ao mundo vem sendo criticada em vários âmbitos e por diversos atores de diferentes países há décadas, tendo as universidades um papel fundamental nessa crítica política, social e epistemológica. Além de Quijano e Mignolo, outros autores como Boaventura de Sousa Santos (2005) e Grada Kilomba (2019) discutiram questões semelhantes em seus trabalhos. Para nossa discussão, destacamos Ariella Azoulay, com sua recente pesquisa sobre reparação história e o questionamento sob nova perspectiva da razão pela qual acadêmicos, mesmo aqueles críticos a esse enquadramento, seguem alinhados a uma lógica imperial do conhecimento, dos arquivos e do próprio léxico colonial. Azoulay propõe desaprender o imperialismo, expressão que dá título ao seu mais recente livro, ainda sem tradução no Brasil (AZOULAY, 2019). A pesquisadora chama a responsabilidade especialmente para os historiadores que, muitas vezes, naturalizam os arquivos como depósitos neutros de documentação, quando, na verdade, são instituições que fazem parte de uma tecnologia de violência. Os arquivos, assim como os museus, não são lugares onde o passado está armazenado. Ao contrário, argumenta Azoulay, são instituições que fabricam o passado, naturalizando como um fato de outros tempos a recusa das
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pessoas em serem colonizadas e subjugadas e os documento produzidos sobre suas vidas por meio de atos de violência. Com sua proposta de potential history, a estudiosa propõe uma transformação institucional radical a partir da ideia de reparação não como um término de querelas históricas, mas como uma prática de potência histórica (AZOULAY, 2020). Portanto, considerando as ponderações de Mignolo, Quijano e Ariella Azoulay como provocações salutares para o professor/historiador, partese aqui da ideia de que a atitude de desmantelamento e desnaturalização da hegemonia das narrativas ocidentais, e consequente exposição da arbitrariedade do monopólio ocidental sobre as formas legítimas de conceber o saber e sua enunciação, é um ato de decolonialidade. Se a própria exposição da colonialidade do poder - tônica oculta das relações, da fabricação e dos processos constitutivos da modernidade - é um passo para a decolonialidade ao descortinar opressões e violências veladas, trabalhar a Guerra Fria de uma perspectiva global, abre espaço para sua desprovincialização, (CHAKRABARTY, 2008) retirando-a da história de um vitorioso Ocidente para pensá-la também como palco para outras agendas de internacionalismo e solidariedade global. Guerra Fria Global: um conceito necessário
O pesquisador Tony Smith diz que para muitos estudantes pode parecer que há pouco de novo a ser dito sobre a Guerra Fria, apesar da vasta documentação e material sobre o período. De fato, não é nada complicado buscar informações sobre esse contexto. São muitas as produções hollywoodianas, os vídeos explicativos no Youtube, as charges para se buscar no Google. Mesmo assim, as categorias básicas de análise para se entender os fatos são quase pré-estabelecidas desde as aulas do Ensino Fundamental: polaridade política, Estados Unidos e União soviética disputam áreas de influência e grandiosidade militar, conflito armado “exportado” para o
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Terceiro Mundo. A partir daí, buscam-se as curiosidades – a corrida espacial, as “guerras quentes”, o homem na Lua, espionagens. Mesmo para estudantes de graduação e alguns pesquisadores experientes, enveredar pela documentação disponível nos arquivos estadunidenses ou pela novíssima documentação comunista recentemente aberta parece ser mais pela busca de novos fatos, mas não por novas interpretações que modifiquem o entendimento fundante sobre o período (SMITH, 2000, p.567). Porém, a historiografia da Guerra Fria é bastante diversa em pontos de vista. Dos ortodoxos aos pós-revisionistas, as correntes demonstram a potencialidade desse objeto de pesquisa que está longe de alcançar um consenso entre especialistas. Nas décadas de 1950 e 1960, o expansionismo soviético como causa da Guerra Fria foi reinante entre as pesquisas desenvolvidas sobretudo nos departamentos das universidades dos Estados Unidos. A quebra de Stálin dos acordos de Yalta e Potsdam rumo à Europa Oriental, para a chamada corrente ortodoxa, composta em sua maioria por historiadores liberais, teria obrigado os EUA a um papel reativo baseado nos princípios da garantia da autodeterminação e da democracia. O problema dessa interpretação, está claro hoje, reside na negação dos interesses e ambições dos EUA na perpetuação do conflito (HARPER, 2011, p.83-84). Em resposta aos ortodoxos, no final da década de 1960 e durante a década seguinte, revisionistas da “New Left” apontaram o imperialismo dos Estados Unidos como responsável pelos contornos do conflito ao redor do mundo e, dessa vez, a política pós-guerra dos soviéticos como defensiva. Apesar de várias discordâncias entre si, esses autores costumam ser divididos em dois grandes grupos. Os “soft revisionists” costumam enfatizar mais ações individuais do que sistemas internacionais e instituições. Para esse grupo, a Guerra Fria teria ocorrido em razão de falhas de políticos como Henry Truman, por exemplo. Os “hard revisionists”, por sua vez,
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colocaram o conflito na conta do sistema americano, baseado no contínuo expansionismo internacional do país (MADDOX, 2015, p.4-5). Nessa linha, quando os soviéticos se negaram a compactuar com esse desejo de hegemonia, sobretudo na Europa Oriental, foram colocados no lugar de inimigos. Daí, então, o conflito ser de responsabilidade dos Estados Unidos e sobre o qual a URSS não fez mais do que reagir. Como John Harper aponta, o revisionismo realizou uma correção necessária em relação à corrente ortodoxa, mas “substituiu uma visão estereotipada da URSS por outra”, além de oferecer uma explicação simplista do imperialismo expansionista estadunidense (HARPER, 2011, p.85). Pós-revisionistas, no fim da década de 1970, inauguraram uma nova corrente interpretativa para o conflito Leste-Oeste, entendida por muitos como uma síntese equilibrada entre os dois grupos precedentes. Esses historiadores avançaram em relação à culpabilização e buscaram complexificar o objeto a partir da lógica da estrutura do sistema internacional, mas permaneceram focados demais nos aspectos diplomáticos, militares e bipolar do conflito. Pesquisas ainda mais recentes sobre a Guerra Fria, que nos interessam diretamente nesse texto, por sua vez, situam-se fora das duas perspectivas anteriores e buscam se contrapor a essas historiografias tradicionais e centradas no Norte e analisá-las de forma crítica e ampliada. Para esses pesquisadores, a história do chamado Terceiro Mundo deve ser considerada como parte integrante e atuante, e não apenas receptora, das políticas globais da época. Odd Westad, em The Global Cold War: Third World Interventions and the Making of our Times, busca explicar a Guerra Fria e como as regiões do então chamado Terceiro Mundo foram, segundo o autor, cruciais para a formato do conflito: “Os aspectos mais importantes da Guerra Fria não foram nem militar, estratégico ou eurocentrado, mas sim conectados ao desenvolvimento político e social no Terceiro Mundo” (WESTAD, 2005, p. 396). Em relação às correntes historiográficas
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predecessoras, a proposta de Westad abre novas portas para o entendimento do conflito. O autor argumenta, então, que o entendimento de que a Guerra Fria foi ditada pelo Norte e não pertence ao Sul é infundado. Para o especialista, o intervencionismo das superpotências tanto moldou as mudanças nos países do então chamado Terceiro Mundo, que tiveram que atualizar suas agendas a partir dessas novas realidades, quanto foi moldado em razão das propostas e modelos alternativos de desenvolvimento e convivência internacionais aventados no Sul. Essas questões criaram mudanças e exigiram adaptações de todos os atores envolvidos no fazer da nova ordem global (WESTAD, 2005, p. 1-8). Tony Smith, na mesma linha, defende o argumento de que os atores “menores” no sistema internacional muitas vezes agiram na intenção de bloquear, moderar, neutralizar ou dar fim ao conflito – sendo essa uma visão mais conhecida – mas que, por vezes, também articularam para intensificar, prolongar e expandir a Guerra Fria a partir de prerrogativas que atendessem a seus próprios interesses nacionais. Portanto, alerta Smith, qualquer estudo que foque somente na bipolaridade EUA-URSS é incompleto, pois as ferramentas essenciais para compreender esse conflito estão também no estudo dos governos da Coreia do Norte, Egito, Cuba, Alemanhas Ocidental e Oriental, Israel, Nicarágua etc., pois a guerra só foi como foi por causa desses atores (SMITH, 2000, p.568). Propostas como a de Smith e Westad são interessantes pois, a partir de fontes do Sul, apontam na direção de uma nova estrutura analítica para entender o conflito de maneira mais ampla. E essa sem dúvida é uma mudança teórica e epistemológica importantíssima para a historiografia sobre a Guerra Fria e essencial para quem tenta acompanhar os desdobramentos das agendas políticas do Terceiro Mundo naquele momento. Ao trabalho de Smith, gostaria de acrescentar a necessidade de entendermos e pesquisarmos também o papel internacional de atores não estatais. Foco deste
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artigo, as conferências internacionais do Terceiro Mundo como objeto de pesquisa mostram a potencialidade do intuito. Atores do Terceiro Mundo, como africanos, latino-americanos e asiáticos, serão aqui entendidos como agentes modificadores e não títeres dos desejos expansionistas de superpotências, o que nos convida a ver o conflito sob novas lentes, que não os isolem em um único box de livro didático. Conferências internacionais e atuações africanas
Repensar o próprio conflito da Guerra Fria de maneira estrutural, portanto, torna-se essencial para o objetivo que aqui se desenha. Dentro dessa temática, propomos um olhar mais atento às conferências internacionais protagonizadas pelo Terceiro Mundo nesse período e, em especial, à atuação dos agentes africanos, estatais e não estatais, no modo como criaram e fizeram uso do capital político dessas reuniões. Para isso, é preciso entender o contexto em que se arquitetaram esses encontros e como, juntos, conformam uma agenda política terceiro-mundista. Desde a década de 1940 e de modo mais organizado nos anos 1950 e 60, países independentes e movimentos de libertação na Ásia e na África, além das esquerdas latino-americanas, a partir da Conferência Tricontinental de Havana, teceram redes de solidariedade política, intelectual e econômica e compuseram um projeto político transnacional em prol de uma agenda de lutas comum (GENEROSO, 2017). Esses encontros, claro, tentaram – e por vezes falharam em – superar barreiras linguísticas e diferenças culturais, e não raro esbarraram em objetivos nacionais incompatíveis com a agenda multilateral da solidariedade. Esses espaços de contato, afirma a historiadora Leila Hernandez, trouxeram à tona “equivalências, homologias, ambiguidades e contradições [que] contribuíram para alargar a imaginação política e nortear as ações com ênfase nas transformações
revolucionárias
em
contextos
particulares”
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(HERNANDEZ, 2010). Nesse período, questões nacionais também estavam intimamente ligadas a contextos globais, como foram os casos do Congo, da Argélia e do Vietnã, por exemplo, que mobilizaram povos e governos de diversas partes do globo em seus conflitos. Importante é notar como essas lutas convergiram para os espaços de discussão internacionais e conformaram planos de ação e de futuro, ainda que não concretizados em todos os seus propósitos do momento. A Conferência de Bandung de 1955 é muitas vezes citada como símbolo de uma terceira via diante de um mundo bipolar. Nela, estiveram presentes 29 nações afro-asiáticas recém-independentes e, pela primeira vez, Sukarno, presidente da Indonésia, Jawaharlal Nehru, primeiro-ministro da Índia, Gamal Nasser, presidente do Egito, Zhou Enlai, premiê chinês, Ho Chi Mihn, primeiro-ministro do Vietnã do Norte, representantes da Costa do Ouro (atual Gana) e tantos outros estiveram reunidos como políticos em um espaço oficial de ação e de reconhecimento. Em Bandung, estiveram representados países independentes e em vias para a independência de diversas regiões da Ásia e da África. Eram eles: Afeganistão, Birmânia, Camboja, Ceilão, República Popular da China, Filipinas, Índia, Indonésia, Japão, Laos, Nepal, Paquistão, República Democrática do Vietnã, Vietnã do Sul, e Tailândia, na Ásia; Arábia Saudita, Iêmen, Irã, Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, e Turquia, do Oriente Médio; e Etiópia, Egito, Líbia, e Libéria, já independentes, e Costa do Ouro e Sudão, da África. Além disso, foi o primeiro momento em que se reuniram chefes de Estado e líderes de movimentos de libertação, como foi o caso da Frente de Libertação Nacional da Argélia, por exemplo (YOUNG, 2001). Os países africanos e asiáticos foram os primeiros a perceberem a potencialidade de uma união em escala internacional e a instrumentalizarem politicamente suas condições semelhantes diante do passado colonial. É preciso marcar o encontro em Bandung como ponto fundacional de todo
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o movimento afro-asiático. Sem dúvida, essa conferência na Indonésia foi crucial nas relações entre africanos e asiáticos na segunda metade do século XX, não apenas pela criação de força política a ser mobilizada internacionalmente, mas também por ser parte da nova ordem pós-colonial (SHIMAZU, 2013, p. 1-28). A visibilidade do Terceiro Mundo após Bandung estava em primeira cena e diferentes projetos políticos seriam vinculados à ascensão do conceito. Os anos seguintes testemunharam o aumento do número de ativistas políticos interessados em participar de encontros e de implodir a lógica de exclusividade para representantes estatais, vigente na primeira Conferência Afro-Asiática. Ao longo das décadas de 1950 e de 1960, cada vez mais militantes dos movimentos de libertação e intelectuais estiveram presentes nessas conferências, dando maior diversidade às pautas em discussão. Diversos eventos movimentaram o cenário internacional pós-Bandung. Um dos principais, que chamou para si o título de herdeira direta de 1955, a Conferência do Cairo, em 1957, afirmou a premissa do neutralismo diante das potências da Guerra Fria, ainda que, paradoxalmente, abrisse brechas para a negociação e participação da URSS. A Conferência reuniu, na capital do Egito, 500 delegados de países africanos e asiáticos. Apesar de inspirado pelo “espírito de Bandung”, o evento não ostentou o título de II Conferência Afro-asiática por ter a presença de organizações independentes e não somente de chefes de Estado (LENTIN, 1977). Cairo 1957 marcou, portanto, nos primórdios do movimento Afro-asiático, a diversidade de formas e estratégias de fazer política internacional no e do Terceiro Mundo. Criada na ocasião, a Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos (OSPAA) teve como mandato coordenar comitês nacionais de solidariedade, realizar novas reuniões periódicas, bem como promover a edição de uma revista trimestral de escritores afro-asiáticos, a
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Lotus. No mesmo ano, surgiu o Movimento Anticolonialista, cujo evento de lançamento, em Paris, contou com a presença de Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz, Amílcar Cabral, Guilherme do Espírito Santo e Marcelino dos Santos, e destacou seu apoio aos movimentos de independência nas colônias portuguesas na África. Importante ressaltar que, na maior parte dos anos 1950, o “asiatismo”
esteve
mais
presente
nas
reuniões
de
solidariedade
terceiromundista (GARCIA, 2000), prevalecendo a vontade e a força política dos países dessa região. No entanto, o pan-africanismo e o projeto de uma África unificada na cena internacional retomariam sua força com as independências africanas a partir do fim da década. Em 1958, a I Conferência dos Estados Independentes da África, em Monróvia, e a Conferência dos Povos do Magrebe, no Tanger, deram coro ao apelo pela autonomia dos povos sacramentada pelos princípios de Bandung e discutiram vias possíveis para a independência, passando pelo reconhecimento da Carta das Nações Unidas e admitindo a possibilidade da luta armada. Ambas as conferências reforçaram a intenção em compor o concerto das nações pelas vias institucionais e reatualizaram a importância de Bandung no imaginário do Terceiro Mundo. A I Conferência dos Povos Africanos, também em 1958, foi marcada pelo protagonismo de Kwane Nkrumah, um político nascido na Costa do Ouro, atual Gana, que já havia tido participação central no V Congresso Pan-africano, realizado em Manchester, em 1945. Um marco na luta pela independência dos países africanos. Nkrumah tornou-se o primeiro Primeiro Ministro de Gana independente, em 1957, e líder pan-africanista influente, defendendo a criação imediata de um Estado africano federativo, uma linha considerada por lideranças de outros países africanos, como a Libéria, como excessiva (PAIM, 2014, p. 88-112). Não por acaso, esse evento, no qual se reuniram intelectuais e lideranças políticas do
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continente, marcou o crescimento da imagem de Gana como centro articulador pan-africanista pelas independências no restante do continente. Nos anos seguintes, a II Conferência dos Estados Independentes da África, em Accra, em 1959, apoiou oficialmente a independência argelina e a II Conferência dos Povos da África, em 1960, na Guiné Conacri, teve que lidar com a ruptura sino-soviética. O ano de 1960 concentrou as independências no continente africano e, com isso, a Assembleia Geral das Nações Unidas ganhou 17 novos países em sua mesa de decisões. Em 1963, mais uma conferência tomou forma em Adis Abeba, na Etiópia, como parte da crescente luta dos países africanos para criarem e fortalecerem instituições internacionais interafricanas que pudessem atuar como uma plataforma internacional de negociações e representação pan-africana, o que esbarrou reiteradas vezes em disputas de interesse, protagonismo e imaginação política internas ao continente. A criação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, foi uma promessa de resolução final para antigos impasses a partir de uma concepção de confederalismo regional que previa a cooperação entre Estados com preservação da soberania de cada país, marcando o enfraquecimento das propostas de federalismo direto e de criação do chamado “Estados Unidos da África”. Desde os primeiros encontros para a formulação dos princípios básicos da OUA, três grupos distintos se formaram em seu interior: Casablanca, Brazaville e Monróvia advogaram tipos diferentes de união entre os Estados. O primeiro, composto por Gana, Guiné, Mali, Líbia, Egito, Marrocos e Argélia, clamava por uma união federativa imediata dos países africanos; o de Brazaville, liderado pelo Senegal e pela Costa do Marfim, permanecia próximo a interesses de unidade regional e em sua ligação com a França; e o de Monróvia, com o protagonismo da Nigéria, Tunísia, Etiópia, Libéria, Sudão, Togo, e Somália pedia uma unificação
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cautelosa, em etapas, temerosos de perder a recém conquistada independência política, agora para países africanos (CERVENKA, 1977). Os opositores dos projetos de unidade estatal, como os então representantes do Senegal, da Libéria e da Nigéria, entendiam que os interesses específicos dos países africanos seriam melhor representados em escala regional e sem unificação. Na edição de número 50, de 1964, da revista Présence Africaine, por exemplo, defendia-se um projeto pan-africano que não previa a formação imediata de uma federação continental e a OUA surgia sugestivamente como o triunfo da negociação, acima de diversidades raciais e culturais: Há um ano, Adis Abeba. África negra, África branca, África do bubu, África de jelaba, de filá, de turbante, a África em toda sua diversidade esteve reunida e entrou em acordo sobre várias questões, questões que constituem, doravante, a Carta de todo um continente (P.A., 1964, p. 3).
Segundo o pesquisador sul-africano Baba Schalk, a noção de pan-africanismo foi de fato ativamente promovida pela cúpula da OUA – o que é uma posição controversa – a fim de fortalecer a comunhão entre os povos do continente e formar um senso de identidade e solidariedade entre os Estados africanos (SCHALK; AURIACOMBE; BRYNARD, 2005, p. 499). No entanto, e apesar do otimismo militante da Présence, a OUA não conseguiu escapar das divisões internas herdadas dos impasses anteriores sobre como projetar uma África pan-africana, que acabaram marcando sua trajetória. Nesse sentido, a organização foi – e permanece, agora sob o nome de União Africana (UA) – inserida na história plural e não raro conflituosa do pan-africanismo, como uma bandeira internacionalista também em diálogo com o terceiro-mundismo e inserida nos pesos e contrapesos da Guerra Fria.
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A passagem da década de 1950 para a década de 1960 teve ainda um acontecimento marcante não só para os países africanos e asiáticos, mas para o planeta em Guerra Fria – a Revolução Cubana. Um pilar importante da política externa de Fidel Castro foi erguer Cuba como panteão internacional das esquerdas, sobretudo do Terceiro Mundo e esse projeto tornouse ainda mais urgente após sua expulsão da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1962. A ideia da Conferência Tricontinental de Havana, realizada em 1966, nasce desse contexto de crescente isolamento internacional e da força inspiradora da revolução para movimentos de libertação e esquerdas no mundo, chamado por Gerard Charliand de “euforia Terceiro-mundista” (CHARLIAND, 1977, p. 8). Este evento fundador marca a convergência entre movimentos de solidariedade afro-asiática pré-existentes e a vertente do latino-americanismo, que via na Revolução Cubana sua grande liderança. Além de mudança do eixo geográfico, é notável a viragem em termos do projeto terceiro-mundista em destaque. A Conferência Tricontinental de Havana reuniu cerca de 600 delegados, entre eles representantes de dezenas de países africanos, latino-americanos, caribenhos e asiáticos. Posicionou-se como um movimento não só anticolonial, aspecto que compartilhou com a Conferência de Bandung, do Cairo e com todos os eventos realizados em solo africano debruçados sobre os rumos do panafricanismo citados acima, mas também como defensora da via armada e da revolução como métodos primordiais e necessários para a transformação do mundo. A conferência dos três continentes condenou o imperialismo estadunidense, ao passo que incluiu as delegações chinesa e soviética, lidando com as disputas crescentes entre elas. Como se vê, o Terceiro Mundo enquanto campo de ação política e projeto de organização e solidariedade internacional, passou por diferentes configurações durante as décadas de 1950 e 1960. Inserido em jogos de
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força entre diferentes representações, organizações e discursos políticos, a diversidade e, por vezes, as discordâncias, em torno do que defender como proposta de futuro para essa parcela do mundo são elementos que formam o imbricado cenário dos atores da Guerra Fria externos – mas nunca alheios - ao chamado mundo bipolar. Considerações Finais
O conceito de Guerra Fria Global procura ampliar o olhar de analistas que se debruçam sobre as décadas de 1950 a 1980 para as complexidades das propostas, das disputas e das negociações em jogo durante os eventos. No interior dessa perspectiva, o Terceiro Mundo emerge como campo de apropriação, transformação e construção de práticas e significados que permearam o repertório político, social e intelectual do período, forjando também o que se pode nomear como Guerra Fria. Ao partir de tal conceito, este capítulo procurou reunir discussões, apontamentos e caminhos que subsidiem a construção de uma sequência didática sobre o tema, entendendo que tal tarefa precisa gerar a compreensão desse contexto fora da imagem da África e dos territórios do Terceiro Mundo como simples receptáculos da “guerra quente” empreendida por dois blocos político-ideológicos. A ideia foi sugerir que, dos encontros apontados e de vários outros, partiram agentes fundamentais para o fazer do conflito e para modificações na própria agenda global que reverberou nas superpotências, obrigando-as a recuarem e a agirem em uma perspectiva relacional. Nesse sentido, a premissa que guiou o texto foi a necessidade de que nossos estudantes entendam diferentes – e contrastantes – narrativas sobre o conflito em questão, e sobre a história de forma mais ampla, e desenvolvam um olhar crítico a respeito de uma perspectiva ultra focada na bipolaridade ou na centralidade do ponto de vista ocidental. A partir disso, estimula-se a compreensão das consequências:
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como tal narrativa centrada na bipolaridade exclui a agência de outros atores? De que forma os atores do Terceiro Mundo entendiam as possibilidades de futuro e se engajavam em projetos para sua concretização? Esses agentes necessariamente entendiam que toda ação que fizessem estava ancorada na ordem bipolar e já fadada aos objetivos das superpotências? Enfim, trabalhar dessa forma é também ensinar sobre os perigos do anacronismo, conceito cujo entendimento é essencial para a disciplina histórica. Essa perspectiva não pretende, claro, negar as desigualdades que constituem diferentes lugares de poder para os grupos aqui trabalhados e as pautas levantadas, que de resto permanecem como uma força formativa para a própria ideia de Terceiro Mundo, forjado e apropriado a partir da mobilização de marcadores de exclusão e dominação e pela ressignificação das divisões mundiais. O cerne da argumentação situa-se em colocar em evidência as possibilidades de sua complexificação, perturbando representações de passividade e invisibilidade vinculadas aos movimentos organizados ou identificados pelo termo Terceiro Mundo. Entre conflitos armados e articulações ideológicas, novas estratégias de ação foram arquitetadas pelos povos que questionavam o arbítrio estrangeiro sobre seu próprio destino a partir de meados da década de 1940. Dentre as várias instâncias e palcos de atuação possíveis de resistência, o trabalho das conferências em sala de aula se torna um ponto de partida interessante para compreender as discussões e proposições de alternativas para a lógica colonial, bipolar e imperialista do mundo. Convidamos os docentes a conhecerem a sequência didática proposta para este tema, presente no capítulo XX desta publicação.
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Saravá, Dona Clementina! Reflexões sobre a prática da educação para as relações étnico-raciais na pós-graduação lato sensu Letícia Bezerra de Lima 1 Patrício Pereira Alves de Sousa 2
"Com licença do curiandamba Com licença do curiacuca Com licença do sinhô moço Com licença do dono de terra." (Canto dos escravos I - Clementina de Jesus) Introdução
No presente capítulo compartilhamos nossa experiência de realização da disciplina Educação para as Relações Étnico-Raciais no curso de pósgraduação lato sensu em Temas e Perspectivas Contemporâneas em Educação e Ensino, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), campus Valença. Fomos nós, os autores da reflexão, os dois professores responsáveis pela sua condução nos anos de 2016 e 2017. Além de compor o referido curso, somos também docentes de sociologia e geografia do ensino médio/técnico integrado na instituição. Nossa intenção com o desenvolvimento dessas reflexões é, ao invés de criar um roteiro a ser replicado em outras ações de educação antirracista, 1
Letícia Bezerra de Lima. Professora de Sociologia no CEFET/RJ, campus Valença. Licenciada em Ciências Sociais (UNESP-Araraquara), Mestra em Educação (UFRJ) e Doutoranda em Estudos de Gênero e Feminismo (UFBA). Contato: [emailprotected]. 2
Patrício Pereira Alves de Sousa. Professor de Geografia no CEFET/RJ, campus Valença. Bacharel e Licenciado em Geografia (UFV). Mestre em Geografia (UFMG). Doutor em Geografia (UFRJ). Contato: [emailprotected].
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a de dialogar sobre os trajetos que percorremos e sobre as intenções, motivações, angústias, expectativas e outras emoções que nos acompanharam na experiência de desenvolvimento da disciplina. A formulação do curso foi concomitante ao início das atividades do ensino médio no campus. Um grupo de professores recém-ingressado no CEFET/RJ, percebendo seus interesses comuns e tendo realizado experiências formativas de pós-graduação stricto sensu em áreas correlatas ao ensino, conceberam a possibilidade de oferecer presencialmente um curso gratuito que atendesse à demanda de especialização de profissionais da educação via instituição pública, formato de pós-graduação que ainda não existia na região. A partir da participação em edital de credenciamento, o curso foi então aprovado e teve suas atividades iniciadas em outubro do ano de 2015 com uma identidade interdisciplinar e buscando abarcar questões contemporâneas no campo educacional. O curso se encontra atualmente em sua terceira turma, com último ingresso em 2019. O corpo docente é constituído por professores das mais diversas licenciaturas. O corpo discente, por sua vez, é constituído de profissionais que atuam como docentes e corpo técnico de escolas ou em espaços educativos não formais. Assim, além de profissionais das diferentes licenciaturas, tem sido recorrente a procura do curso por graduados/as em áreas como Administração, Direito, Economia, Enfermagem, Psicologia e Serviço Social. O elenco de disciplinas é constituído tanto por temas mais tradicionais na área de educação – como teorias e políticas da educação, avaliação, currículo e materiais didáticos –, quanto por debates que apenas mais recentemente têm sido difundidos na área, como as práticas educativas em torno das relações étnico-raciais, de gênero e sexualidades e das questões socioambientais. Na composição da grade curricular, a vinculação dos/as professores/as com cada disciplina foi realizada considerando a
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experiência formativa e de atuação dos/as docentes. Especificamente em relação à disciplina Educação para as Relações Étnico-Raciais, nossa vinculação com a mesma foi dada em função de nossas experiências anteriores de pesquisa ou de atuação profissional junto a coletividades negras. Nesta direção, destacamos que embora nós compreendamos que a educação para as relações étnico-raciais (ERER) seja direcionada para todos os grupos populacionais, vivenciamos no curso as marcas do perverso racismo institucional brasileiro, uma vez que nenhuma pessoa preta ou indígena compõe seu corpo docente. Somos, desse modo, uma professora e um professor que se reconhecem enquanto pardos conduzindo um debate sobre as relações étnico-raciais. Quanto às marcações do corpo discente, este é constituído majoritariamente por mulheres pertencentes a diferentes reconhecimentos étnico-raciais, com presença destacada de pessoas negras. É a partir desses reconhecimentos identitários iniciais e destes pontos de localização nas geometrias de poder que partimos para o presente debate. A formação continuada de profissionais da educação para as relações étnico-raciais
Uma distância significativa se coloca entre a promulgação de uma lei e sua efetiva implementação. Para que uma normativa se torne apropriada, é necessário que políticas públicas, vontade governamental, fiscalização judiciária e acompanhamento da sociedade civil sejam realizados. Esta é uma realidade principalmente para a legislação educativa e as chamadas políticas da diferença em nosso país. A estrutura racista, machista e classista de nossas instituições faz com que mesmo as leis já aparentemente consolidadas estejam sempre sob risco de não cumprimento ou de retrocessos.
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As dificuldades de efetivação da lei 10.639/033, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira na educação básica, e da lei 11.645/084, que posteriormente incluiu a exigência do ensino da história e cultura indígena, decorrem desse cenário. Apesar da longa data de suas promulgações, ainda é um desafio para a maioria dos profissionais cumprirem suas determinações. O que a literatura sobre o tema demonstra é que, embora as leis sejam conhecidas, muitos profissionais não se sentem preparados para contemplar o seu conteúdo ou são resistentes à suas questões em função de seus conservadorismos religiosos, posicionamentos na estrutura racial brasileira, tradição patrimonialista no espaço escolar ou formação dentro de uma matriz epistemológica eurocêntrica (MACEDO, 2017). Esse panorama, como nos alerta Gomes (2005), faz com que as questões relacionadas à ERER tenham de ser tratadas como ações coletivas e institucionais, quer dizer, como um conjunto de ações que transpassam a boa vontade individual e que sejam de fato uma política de Estado. A este respeito, podemos afirmar que, a partir das reivindicações dos movimentos negros, o Estado brasileiro de fato impulsionou, ao menos por um período, políticas que buscaram garantir a concretização da ERER. A criação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR, a promulgação de outros documentos normativos e os planos de implementação das leis buscaram garantir sua efetiva aplicação. Para além dessa dimensão estatal, outras medidas ainda necessitam, no entanto, ganhar corpo. Isto porque, como alerta Müller (2015, p. 143-144), para que as referidas leis se tornem de fato apropriadas, se faz necessária a atuação conjunta de “sistemas de ensino, agências de financiamento de 3 4
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm Acesso em 30 jul. 2020.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm Acesso em 30 jul. 2020.
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pesquisa, órgãos de regulação e avaliação e instituições de formação inicial e continuada”. Assim, para que a ERER se efetive, é necessária a ação conjugada de diferentes agentes e instituições, nas mais diversas escalas de poder e de relações. Um elemento central dentro dessas ações e que de maneira especial se relaciona com o debate que aqui realizamos diz respeito à compreensão de que é fundamental que os temas e perspectivas relacionados com essas leis sejam tratados em disciplinas nos percursos formativos iniciais de profissionais da educação. Do mesmo modo, essa formação deve ser estendida àqueles profissionais graduados que, apesar de já atuarem como professores, coordenadores pedagógicos e/ou gestores educacionais, não tiveram esses tópicos contemplados em sua formação inicial. A formação continuada de profissionais da educação se coloca, desse modo, como um ponto fundamental para a efetivação de um ensino antirracista na educação básica. Sobre esse tema, Gatti (2008) indica que sua definição é pouco precisa no país, o que tem permitido que sejam compreendidas como formação continuada as diversas ações que são realizadas concomitantes ou após a formação inicial em nível de graduação. Rocha, Dornelas e Marranghello (2012), por sua vez, destacam como essa modalidade de formação tem sido avaliada como uma oportunidade para que o profissional já graduado possa entrar em contato com temas, conceitos e técnicas que na sua formação inicial foram vistos apenas de forma introdutória e que posteriormente se tornaram relevantes para o seu cotidiano de trabalho. Ainda em relação à sua potencialidade, Coelho e Soares (2016) indicam como ela tem se constituído numa possibilidade de mitigação das desigualdades existentes na estrutura educacional brasileira, ao permitir a correção de processos formativos anteriores ou a atualização em temáticas emergentes.
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Essa expectativa de que a formação continuada no Brasil corrija percursos formativos de qualidade deficitária restringiu, no entanto, sua potencialidade de atualizar profissionais nos debates mais recentes no campo científico, fazendo, em muitos casos, com que ela se instaurasse como política compensatória para correção da má formação (GATTI, 2008). Outro aspecto delicado, como ressaltam Esquinsani e Esquinsani (2012), é o fato de a formação continuada ter sido concebida como uma obrigatoriedade para os professores a partir da mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96)5, o que fez com que ela por vezes se convertesse em uma atividade rotineira e burocratizada, reduzindo seu potencial criativo. Nessa direção, os cursos de pós-graduação lato sensu têm se colocado como importante iniciativa para a formação continuada de professores. “O caráter temporário, versátil, dinâmico e de agilidade na resposta” da especialização para a disseminação de conhecimentos tem feito com que ela seja, como ressalta Pilate (2006, p. 11), a forma prioritária através da qual as redes municipais e estaduais de educação buscam aperfeiçoar sua qualidade e seus recursos humanos. As características dessa modalidade de ensino se constituem, desse modo, em uma possibilidade de formação que atualiza, aperfeiçoa e corrige defasagens, permitindo que professores se adequem às novas demandas e contextos sociais. Diversas são as instituições que têm tratado, em função do exposto, a especialização como uma forma de realizar a formação continuada de profissionais da educação para o trabalho com as relações étnico-raciais (CANEN, XAVIER, 2011; VERRANGIA, SILVA, 2010; COELHO, SOARES, 2010). Na literatura que discute a formação continuada de profissionais especificamente para a ERER, um elemento de recorrente aparecimento é a
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em 30 jul. 2020.
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necessidade de mudanças de concepção no processo educativo. Essas transformações almejadas são, por sua vez, de diferentes ordens. Num primeiro aspecto elas englobam a necessidade de “[...] questionamento das teorias, conceitos, discursos e mensagens que compõem o currículo e as práticas em sala de aula e que muitas vezes se encontram impregnados de preconceitos, estereótipos, silêncios e omissões” (CANEN, XAVIER, 2011, p. 643). Na mesma medida, elas buscam fazer com que a comunidade escolar compreenda que a questão étnico-racial é um tema e perspectiva comum a todos os profissionais da educação, incluindo desde professores até gestores e coordenadores (MACEDO, 2017), e uma necessidade para todas as disciplinas, e não apenas para aquelas mais comumente associadas ao tratamento de temas culturais (SANTOS, 2011; VERRANGIA, SILVA, 2010). Assim, para que a ERER ocorra efetivamente, é necessário que valores e posturas antirracistas façam parte da constituição do/a professor/a para que ele/a maneje de maneira consequente e crítica os materiais e programas que lhe são apresentados. Essa medida, por sua vez, apenas seria possível a partir de uma formação mais densa e comprometida com perspectivas críticas para a ERER, seja de forma inicial ou continuada. A formação continuada se coloca, portanto, como uma possibilidade não apenas para que professores abandonem suas concepções, mas que possam qualificar e valorizar suas práticas e que proponham mudanças a partir do contato com as atualizações e acúmulos do pensamento científico sobre a ERER e das teorias antirracistas (ROCHA, DORNELES, MARRANGHELLO, 2012; COELHO E SOARES, 2016). A disciplina Educação para as Relações Étnico-Raciais no curso de Especialização em Temas e Perspectivas Contemporâneas em Educação e Ensino, do CEFET/RJ
Em relação à disciplina que oferecemos no curso de especialização, a ementa construída no ano de sua criação (2015) apresentou o reflexo do
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nosso acúmulo teórico à época, de modo que quando for oferecida novamente passará por atualizações bibliográfica e temática. Dentre nossos maiores desafios, esteve a dificuldade em tratar a complexidade do assunto dentro de uma carga horária de trinta horas, divida em oito encontros. Nossos objetivos principais com a disciplina foram: (1) problematizar as dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais das relações étnicoraciais; (2) analisar o lugar das relações étnico-raciais no espaço escolar; (3) discutir e contextualizar conceitos relacionados à ERER; (4) identificar e discutir as tendências e temas contemporâneos referentes à ERER. Para realizar estes objetivos, dividimos nossas aulas a partir das seguintes temáticas: (a) introdução e apresentação da disciplina; (b) conceitos em ERER; (c) escola, negritude e identidades; (d) povos indígenas: diversidade, estereótipos e identidades; (e) educação indígena: educação escolar, interculturalidade e o indígena por ele/a mesmo/a; (f) políticas e ações afirmativas. Abaixo descrevemos alguns elementos da dinâmica da disciplina nas duas ocasiões em que ela foi ofertada, considerando as ações que foram mais estáveis. Indicamos ainda algumas adaptações que a disciplina sofreu entre uma turma e outra. No primeiro momento em sala, lemos o poema intitulado 13 de maio não é dia de negro, de Ellen Dutra, mulher negra, advogada pela UFRJ, e o discurso de 1998 de Abdias Nascimento, ocasião em que ele era deputado, 13 de maio, uma mentira cívica6. Este discurso traz ao debate o contexto histórico da abolição e apresenta uma das principais demandas do movimento negro organizado: as ações compensatórias, que seriam medidas de inclusão na educação, oportunidades de trabalho, acesso à moradia e redirecionamento da história dos povos negros. Daquelas primeiras aulas, lembramos que era preciso retomar a ideia de que implementar um 6
Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/abdias-nascimento-13-de-maio-uma-mentira-civica/ Acesso em 30 jul. 2020.
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currículo baseado na ERER não seria simplesmente aplicar um projeto ou evento no 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Foi preciso acolher as dúvidas mais básicas, como por que não é razoável defender a ideia de se comemorar o “dia da consciência humana” ou que “todos são iguais”7. Nas aulas seguintes, trouxemos referências que contribuíssem para fundamentar alguns conceitos chave como raça, cultura, estereótipo, preconceito e discriminação, utilizando os textos de Gomes (2005), Munanga (2005) e Sousa (2010). Preferimos materiais que estivessem disponíveis para downloads e artigos relativamente “curtos” para que pudessem ser acompanhados pelas discentes, uma vez que o curso foi realizado às terças e quintas-feiras à noite. Para ampliar as figuras de representatividade e o imaginário de África, realizamos uma aula sensibilizando os/as discentes a partir da seguinte reflexão: o que sabemos sobre o continente africano? A partir disso, trouxemos, de forma objetiva, indicações da sofisticação e apuro com as quais as sociedades africanas têm historicamente desenvolvido atividades científicas e técnicas, algumas delas marcos importantes para avanços na agricultura, metalurgia, farmacologia e tecelagem em nível mundial. A este respeito apresentamos o exemplo do cultivo do café na Etiópia nos séculos XVIII e XIX, da tecelagem no Congo e no Kano no século XVII e da mineração na África Ocidental e no Zimbábue. Trouxemos também a figura do bastão de ishango, atual Congo, como exemplo do conhecimento matemático que esta nação já produzia 15 mil anos antes da nação egípcia e 18 mil anos antes do surgimento da matemática grega. Nesta ocasião, fizemos
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Entendemos que a data 13 de maio não representa o protagonismo do movimento negro, uma vez que o Brasil, ao ter sido o último país a acabar com o tráfico de pessoas vindas de África, sinalizou para uma saída hegemônica para a “ambição coletiva dos detentores de poder”. Assim, como diz Abdias do Nascimento (1998), a data é “uma mentira cívica”. Já o dia 20 de novembro, é fruto de uma luta histórica do movimento negro pela demarcação da figura de Zumbi dos Palmares e pelo reconhecimento da memória e da história dos povos negros, que constituem a maioria da população brasileira. Assim, esta última data hoje também representa um marco de denúncia do racismo estrutural e da perpetuação dos privilégios da população branca.
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ainda a exposição de fotos contemporâneas de algumas cidades do continente, como Maputo e Luanda, apresentando as maiores universidades destas cidades, as Universidade Eduardo Mondlane e Universidade Agostinho Neto, respectivamente. Em relação à representatividade, trabalhamos com algumas personalidades negras: a desembargadora Luislinda de Valois, a escritora Carolina Maria de Jesus, o intelectual e ex-deputado Abdias Nascimento, a quituteira e referência do samba carioca nascida no recôncavo baiano tia Ciata, o advogado Luiz Gama e o poeta simbolista Cruz e Sousa. Debatemos também algumas figuras embranquecidas por propagandas publicitárias e filmes, como Machado de Assis, citando a propaganda de um banco que em um primeiro momento fez a campanha com um ator branco e após manifestações sobre esta escolha refez e representou Machado de Assis com um ator negro. Trouxemos ainda Chiquinha Gonzaga e também a figura de Cleópatra, explorando situações em que atrizes brancas foram escolhidas para as representarem em filmes e novelas, apesar das iconografias históricas as indicarem como personalidades negras. De forma sucinta, falamos sobre afrorreligiosidade e apontamos para uma discussão que hoje seria tratada como racismo religioso. Como indicação de filme infantil, trouxemos Kiriku e a Feiticeira Karabá (1998)8. Encerramos esta aula com a discussão sobre cabelo e identidade e projetamos a imagem de uma modelo negra com o cabelo crespo cuja frase de reflexão era “Meu cabelo não é ruim… ruim é o seu racismo”. Por fim, exibimos o vídeo-poema: Gritaram-me negra, de Victoria Santa Cruz9. Outros vídeos ficcionais e documentais que utilizamos, e que sugerimos para conhecimento, foram: O Xadrez das Cores (2004)10, produção de Marco 8
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=duDByEwf1x0 Acesso em 30 jul. 2020.
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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0 Acesso em: 30 jul.2020.
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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NavkKM7w-cc Acesso em: 30 jul. 2020.
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Schiavon; Cores e Botas (2010)11, de Juliana Vicente; e Negros Dizeres (2017)12, de Hugo Lima. Esses filmes tratam de como o racismo atravessa as vidas de pessoas negras em diferentes etapas de suas construções identitárias, abordando temas como racismo na infância e na escola; exclusão social, cultural e identitária; construção hegemônica dos ideais de beleza; e violência contra a mulher negra em seu ambiente de trabalho, nas relações afetivas e nas representações midiáticas, etc. Em relação à temática indígena, trouxemos Luciano (2006) e Terena (2003). Os conteúdos selecionados de seus textos abordam a saída dos jovens indígenas de seus lugares de origem para aprenderem as “regras dos brancos” e se fortalecerem enquanto coletivo que tem ciência de seus direitos fundamentais, sem fazer disso um lugar de perda de identidade – aos olhos dos “brancos”, especialmente. [...] os jovens indígenas de Brasília com formação mais crítica nas formas de leitura do homem branco, decidiram, ainda que involuntariamente, criar um movimento indígena mais amplo, com visão de liberdades democráticas, de direito ambiental, de direitos humanos e direitos indígenas, mas sob a ótica do próprio indígena, onde o direito de viver nascia sob uma versão cultural e política baseado no direito de ser diferente e ser gente, trazendo isso uma mensagem de que existia a possibilidade de convivência entre duas histórias, duas identidades e duas formas de vida, porém, sem preconceito ou exclusão, mas tolerância e bem viver, mesmo na diferença. (TERENA, 2003, p.102)
Em uma aula expositiva, utilizamos o data show como recurso didático e trouxemos algumas perguntas para reflexão e sensibilização: (1) O que faz uma pessoa ser considerada indígena? (2) Quem é considerado/a indígena? (3) Quando você imagina um/a indígena, como ele/a é
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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ll8EYEygU0o Acesso em 30 jul. 2020.
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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=agvSmz1k_Us&t=3s Acesso em 30 jul. 2020.
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representado/a? Apresentamos a imagem de um cocar pariko e explicamos que o seu uso tem inúmeras funções, podendo ser destinado a um ritual específico na etnia bororo ou demarcar um grupo e reivindicação específica, como no caso da presença pública. Projetamos a imagem de uma propaganda em comemoração ao 19 de abril - “dia do índio” - e a comparamos com uma foto que pesquisamos na internet de crianças do ensino infantil “comemorando” este dia. Percebemos que, em geral, a representação do que é “ser indígena” na escola é etnocêntrica. Debatemos sobre a importância de se atentar para o caráter generalizante e preconceituoso que fazemos desta data e que hoje sabemos que ela deve ser expressa e conhecida, segundo Daniel Munduruku13, como “o dia da diversidade indígena” e um dia de resistência. Expusemos, então, a foto de um confronto territorial e depois projetamos várias fotos como: mulheres de cocar, homens jogando futebol, um indígena usando o celular, um professor e turma indígenas em sala de aula e, por fim, projetamos a figura de Jefferson Nascimento, da etnia macuxi, ex-reitor da Universidade Federal de Roraima, para ilustrar as múltiplas possibilidades de “ser indígena”. Reservamos uma aula para dedicar à cultura negra local, representada pela comunidade quilombola de São José da Serra, onde já desenvolvíamos um projeto de extensão. Apresentamos o documentário intitulado Terra é liberdade (2015)14, produzido por uma equipe de pesquisa da Universidade Federal Fluminense. O documentário nos sugere o debate sobre direitos humanos e o direito ao território. Marca um dia especial para a comunidade especialmente pela atuação valorosa de órgãos públicos, como Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Ministério Público Federal (MPF/RJ), que garantiram a posse
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Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47971962 Acesso em 30 jul. 2020.
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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bym4-vdVRHU Acesso em: 30 jul. 2020.
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da terra e reconheceram o quilombo como fruto de uma ocupação histórica e ancestral de aproximadamente 40 famílias. O filme nos alimenta de esperança por dias melhores especialmente para a nova geração da comunidade de São José. Por fim, quando trabalhamos as ações afirmativas, apresentamos o texto de Daflon, Feres Júnior e Campos (2013) que abordou como se estruturavam até 2012 – quando aprovada a lei 12.71115 – as mais variadas medidas de inclusão dos estudantes no ensino superior nas diversas regiões do país. Este debate foi fundamental para que refletíssemos a importância de uma lei para estabelecer normativas de acesso das “minorias” à universidade e interligar este debate ao texto inicial utilizado no curso, o discurso de Abdias Nascimento. Em relação à metodologia das aulas, além da leitura e discussão dos textos, realizamos debates sobre os filmes selecionados e em uma das turmas fizemos um “trabalho de campo” no Quilombo São José da Serra. Avaliamos as turmas de diferentes formas. Na primeira turma do curso, orientamos os/as discentes para que se dividissem em grupos e realizassem oficinas nas escolas municipais e estaduais mobilizando o conteúdo desenvolvido na disciplina. Na segunda turma mudamos a dinâmica e dividimos a atividade em duas etapas: (1) o/a discente deveria indicar um capítulo ou proposta didática que tratasse de forma colonizada a questão indígena ou negra e desconstruir e/ou desnaturalizar este material utilizando-se dos conhecimentos teóricos discutidos em sala de aula; (2) elaborar uma proposta de material didático com a temática étnico-racial, que pudesse ser usado em contexto escolar. Uma experiência resultante das avaliações que merece ser compartilhada foi a de um estudante que apresentou a análise do sumário de um
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.ht Acesso em: 30 jul. 2020.
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livro de Filosofia e destacou a hegemonia de pensadores europeus. Quando omite todo o conhecimento das minorias – mulheres, negros, indígenas – o discente afirma que, “ao mesmo tempo em que possui caráter de verdade [...], podemos concluir que o livro didático, espelhado no currículo, pode determinar toda uma didática colonialista empregada a nossos alunos” (BENEDITO, especialista pelo curso). Neste trabalho, há uma boa reflexão sobre currículo abordando Macedo (2006) quando diz que ele é objeto de diferenciação social uma vez que representa elementos dos grupos socialmente dominantes, que são aqueles responsáveis pela sua elaboração. O pós-graduando retoma ainda Munanga (2005), destacando que um povo sem história seria como um indivíduo sem memória, neste sentido, seria fundamental que o/a professor/a pense nas referências didáticas, além da articulação com outros materiais didáticos. Em relação às oficinas nas escolas municipais e estaduais de Valença - RJ, um grupo trouxe como exemplo da cultura negra local a cantora valenciana Clementina de Jesus, figura ilustre do samba carioca, cujo principal objetivo foi despertar o orgulho de ter esta referência tão próxima e que pode ser desconhecida para alguns estudantes (não somente do ensino básico). Outro grupo trouxe o debate de que o movimento negro tornou público o questionamento sobre o mito da democracia racial e os impactos que essa discussão provocou em uma perspectiva de criação das leis de ações afirmativas - especialmente na esfera educacional-, como as leis referenciadas neste capítulo. Outra oficina interessante foi desenvolvida junto a uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), intitulada “Negros Heróis”. As pósgraduandas exibiram o curta metragem O Papel e o Mar (2010)16, cujos atores principais são Zózimo Bulbul e Dirce Thomas, representando João
16
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=73cWnIOfZXM Acesso em: 30 jul. 2020.
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Cândido e Carolina Maria de Jesus. As discentes trouxeram para a oficina a referência da capoeira local, o Mestre Cid, falecido no ano de 2019. No momento de debate, os/as estudantes do EJA compartilharam suas trajetórias de vida a partir de uma perspectiva da ERER. Por fim, elas fizeram uma exposição na escola com figuras de heróis e heroínas negras e com as histórias compartilhadas pelos/as estudantes da turma. Em avaliação que realizamos junto aos/as discentes sobre a dinâmica da disciplina, eles/as lembraram com bastante entusiasmo a visita que fizemos ao Quilombo São José como parte da atividade da disciplina. Na ocasião, fizemos uma caminhada por parte do território, conhecendo as casas das famílias, o terreiro de umbanda, a matriarca da família Fernandes e líder espiritual - tia Tetê-, visitando a “árvore sagrada”, o Jequitibá. Segundo uma das discentes do curso, O próprio Quilombo não é valorizado em nosso município e em sala de aula. Eu enquanto aluna de escola pública, só tomei conhecimento de sua existência, quando cursava ensino superior. E visitei o Quilombo pela primeira vez no ano de 2015, no mesmo ano que iniciei a pós-graduação. (EFIGÊNIA, especialista pelo curso).
Receber alguns depoimentos como esses nos possibilitou dimensionar nossos alcances, a partir da sinalização de como as ações da especialização reverberaram na educação básica da região. Sobre o curso, uma pós-graduanda indicou: [...] foi uma experiência que acrescentou não só na minha trajetória acadêmica, como também na minha vida pessoal e profissional. Cursei todo meu ensino médio entre os anos de 2008 e 2010, ou seja, já estava em vigor a lei 10.639/2003, e lembro-me de estudar a questão das relações étnico-raciais apenas em datas específicas como 20 de novembro, ou a abolição da escravatura, sempre centrada nas mesmas histórias e figuras, como a princesa Isabel
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ou Zumbi dos Palmares. [...] hoje tenho a consciência que precisei estar em sala de aula, em uma disciplina de pós-graduação para conhecer outras histórias, como o quilombo São José ou Clementina de Jesus, ambos com suas raízes valencianas, nunca antes tinham sido citados nas salas de aulas [...] (JUREMA, especialista pelo curso).
A partir das situações expostas e para além do trato formal e teórico do tema, gostaríamos de expressar que todas estas questões também nos atravessaram e atravessam emocionalmente. Como sujeitos concretos, professores que vivem as delícias e angústias da profissão no país, sentimos essa disciplina a partir de sensações de dor e esperança. Dor da escuta de tantas histórias de pós-graduandos/as negros/as e de ascendência indígena que compartilhavam suas duras experiências familiares, suas traumáticas memórias escolares como corpos marcados e de atuais profissionais da educação que ainda vivenciam os efeitos do perverso racismo à brasileira. Ao lado dessas trajetórias com tantas camadas de sofrimento, emergidas a partir de histórias de vida do Vale do Paraíba Fluminense, onde a escravização negra e a dizimação indígena deixou tantas cicatrizes, as situações de esperança nos ocorriam a partir da visualização de processos contemporâneos de reconhecimento das positivações étnico-raciais. A presença memorial da sambista Clementina de Jesus e da violonista, cantora e compositora Rosinha de Valença nas discussões em aula; da cultura jongueira do Quilombo São José da Serra no trabalho de campo; dos relatos dos pós-graduandos que tiveram suas histórias de vida profundamente modificadas pelas políticas de ação afirmativa no ensino superior; e de pós-graduandos brancos que reconheceram seus lugares na luta antirracista, foram todas situações que nos territorializaram num contexto em que chegamos para desenvolver uma atividade profissional, mas que também se tornou para nós um lugar de vida e relações.
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A produção deste texto e a realização dessa disciplina nos convocaram, desse modo, a também nos vermos como profissionais da educação em formação continuada, uma vez que nos permitiu rememorar ações, repensar práticas, reconhecer limitações, visualizar necessidades de aprimoramento e, sobretudo, encontrar motivação para expansão de nossos propósitos de colaborar para a construção de uma educação antirracista em meio a outras diversas iniciativas que se constituem pelo país. Considerações finais
Em nosso ponto de vista, avaliar mudanças e permanências é uma estratégia fundamental para o avanço das políticas educacionais. Assim, ainda que o eurocentrismo, o epistemicídio e o conservadorismo permaneçam fortemente presentes nas relações escolares, é forçoso reconhecer a multiplicação de disciplinas em cursos de graduação e pós-graduação, a publicação de diversos livros, artigos, teses e dissertações, bem como a revisão de materiais didáticos no que toca às questões étnico-raciais. Consideramos, desse modo, que o discurso da falta de materiais e do desenvolvimento de reflexões sobre as populações negras e indígenas já encontra seus limites. Embora verdadeiramente ainda haja muitos caminhos a percorrer, hoje, mais do que a ausência, o que talvez precisemos discutir são as condições e os conteúdos em que se dão a ERER, uma vez que suas ações já são uma realidade para diferentes profissionais e instituições. Avaliando nossa experiência na condução do curso, consideramos, pois, que educar para as relações étnico-raciais foi um processo de reeducação de todos nós, pois foi preciso internalizar e reorganizar os nossos referenciais teóricos formativos e reconhecer, neste aspecto, a centralidade da produção intelectual negra e indígena. Além disso, entendemos que a prática da lei em ambiente escolar não pode estar deslocada da perspectiva
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mais ampla de uma sociedade democrática, igualitária e inclusiva em todos os aspectos. Mais do que concluir, as características próprias deste texto nos levam então a apontar para o movimento da ação. Nosso diálogo permanece com os profissionais da educação que se pós-graduaram junto a nós e que agora dão continuidade em suas atividades nas escolas e espaços educativos. Os resultados de suas monografias de conclusão de curso dentro da ERER e suas outras produções dentro do curso reverberam neste momento para outros sujeitos e em outras instituições. Referências CANEN, Ana; XAVIER, Giseli Pereli de Moura. Formação continuada de professores para a diversidade cultural: ênfases, silêncios e perspectivas. Revista Brasileira de Educação, n. 48, p. 641-661, set./dez. 2011. COELHO, Wilma de Nazaré Baía. SOARES, Nicelma Joselina Brito. Formação continuada e a implementação da Lei 10.639/2003: diálogos entre a Universidade e a Escola Básica. Revista da ABPN, n. 19, p. 69-96, mar./jun. 2016. DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Cadernos de Pesquisa, n.148, p.302-327 jan./abr. 2013. ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira; ESQUINSANI, Valdocir Antonio. Cultura profissional e formação docente continuada: um estudo de caso. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 20, n. 3, p. 241-249, set./dez. 2015. GATTI, Bernardete. Análise das políticas públicas para a formação continuada no Brasil, na última década. Revista Brasileira de Educação, n. 37, p. 57-70, jan./abr. 2008. GOMES, Nilma Lino. Educação e relações étnico-raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. 2 ed. Brasília: MEC, 2005. p. 143-154
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Abdias.
13
de
maio,
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Parte II Práticas escolares: ensino fundamental e médio
7 O protagonismo de Sidi: mulher, teatro e ensino de história da Nigéria Luiza Nascimento dos Reis 1 Introdução Venha, minha cara professora! Vamos conhecer Sidi! Vamos refazer os seus caminhos seguindo seus passos por I-lun-ji-le! (REIS, 2018)
Sidi é a personagem central do texto dramático O Leão e a Joia (Soyinka, 2012), um dos primeiros trabalhos do dramaturgo nigeriano Wole Soyinka. A história se passa numa pequena comunidade dos povos yorubás no interior da Nigéria, país do oeste africano, nomeada de Ilunjile. Na trama, Sidi, uma jovem considerada a mais bela de todas, precisa decidir-se entre dois pretendentes para seu casamento: o jovem professor primário Lakunle ou o sexagenário chefe da aldeia Baroka. Sidi é considerada "a joia de Ilunjile" e tenta dialogar com cada um deles ao tempo em que é destacada pelas lentes de um fotógrafo europeu. O protagonismo da personagem Sidi estimula reflexões acerca do papel da mulher na história da Nigéria contemporânea. A trama se passa em 1958, mesma época em que o texto foi construído. O momento era decisivo para a história desse país, assim como para vários outros países africanos que lutavam pela independência política. A Inglaterra colonizou a Nigéria 1
Professora Adjunta do Departamento de História, coordenadora do Instituto de Estudos da África e do Afrika'70: Grupo de Estudos em História da África Contemporânea na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Contato: [emailprotected]. Agradecimentos especiais às professoras Tereza Damásio Cerqueira (UNEB), Mariana Andrade Gomes (UFBA), Fernanda Bianca Gallo (UNICAMP) e ao professor José Bento Rosa da Silva (UFPE). O projeto de extensão Leitura dramática de O Leão e a Joia de Wole Soyinka contou com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura PROExC/UFPE.
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desde o final do século XIX até 1960. A postura, os dilemas e expectativas de Sidi estão conectadas com amplas possibilidades e desejos de mudança. Mas quais mudanças eram possíveis para aquela jovem mulher preta, da etnia yorubá, numa sociedade marcada pelas hierarquias tradicionais e atravessada por subalternizantes ideologias coloniais? A beleza e vivacidade de Sidi encantou as integrantes do Afrika’70 Grupo de Estudos em História da África Contemporânea (Departamento de História/UFPE) composto por uma maioria de mulheres negras. O protagonismo de uma personagem feminina é uma característica incomum na literatura africana que emergia no período das independências. Sidi foi decisiva para a construção e adesão ao projeto de extensão desenvolvido pelo Grupo de Estudos. Tratou-se da Leitura dramática de O Leão e a Joia de Wole Soyinka vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco e apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROExC), através do edital de apoio a pesquisa em Artes, entre dezembro de 2017 e dezembro de 2018. A intervenção da professora e pesquisadora em dramaturgia Tereza Damásio Cerqueira nos provocou a dar vida àquele texto dramático. Um desafio inédito para o grupo. Para melhor compreender as especificidades deste gênero literário, sobretudo os sentimentos e atitudes das personagens, nos dispusemos a realizar uma leitura dramática e levá-la a estudantes da Universidade e do Ensino Médio. A equipe foi ampliada após uma chamada pública e reuniu 20 estudantes: quinze discentes dos cursos de licenciatura e bacharelado em História, cinco discentes do curso de licenciatura em Música. Finalmente, para desenvolver e montar a apresentação contamos com a colaboração ativa da professora doutora especialista em literaturas africanas, Mariana Andrade Gomes, do bacharel em teatro, contador de histórias e atualmente cursando Pedagogia na
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UFPE, Wyrá Potira Conceição de Jesus e, comigo, professora coordenadora do projeto que vos escreve. “Quem será Sidi?!” tornou-se uma indagação recorrente entre as estudantes que apontavam-se umas às outras como melhor perfil para interpretar a personagem. Sidi, que foi a força matriz para a criação da proposta, será o nosso foco nesse texto. Sem pretender esgotar a multiplicidade de questões abordadas pela trama de Soyinka, focaremos aqui em alguns dilemas e questões em torno dessa personagem e como isso se relaciona com a experiência que vivenciamos na UFPE. Enquanto buscávamos refletir acerca de dinâmicas da história da Nigéria, e da África contemporânea, o que aprendemos com Sidi? Convido você, professora, a embarcar conosco nessa viagem pela Nigéria dos anos 1960, trazendo Sidi e o teatro de Wole Soyinka para a sala de aula. A personagem Sidi no Brasil Primeira Garota: É ela, Sidi! Todas: A joia de Ilunjile!! (REIS, 2018)
Sidi é personagem central da trama que se desenrola em O Leão e a Joia. Suas características revelam a beleza de uma mulher africana yorubá em seus afazeres num dia que parecia comum. Eis sua descrição: Sidi, a jovem mais bela da aldeia, entra pela esquerda, carregando um pequeno balde de água na cabeça. Ela é esbelta e usa os cabelos separados em pequenas tranças. Ela se comporta com orgulho sabendo que é a mulher mais bonita da aldeia. Equilibra o balde na cabeça com a facilidade criada pelo costume. Enrolado ao redor do corpo traz um vestido formando por um pano amplo tecido em casa, dobrado logo acima dos seios, deixando os ombros nus (SOYINKA, 2012, p. 17).
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Figura 1 - Maria Cleusa Silva interpreta Sidi. Museu da Abolição, Recife, 2018. Fotografia: Joelson Souza @ParaMuitos
Sidi e seu emblemático balde d’água levaram cinquenta anos para chegar ao Brasil. A peça teatral surgiu em 1958. Seu texto foi publicado pela primeira vez em 1962 e só chegou ao Brasil em 2012. O livro O Leão e a Joia faz parte da bibliografia elencada no Grupo Afrika'70 cujo foco atual recai em produções intelectuais e artísticas nigerianas produzidas em meados do século XX. A ênfase na História contemporânea da Nigéria, tema ainda pouco explorado no cenário acadêmico brasileiro, proporciona ao grupo a análise de textos literários e exige o esforço de leitura de alguns textos editados em língua inglesa. Entre os autores lidos destacamos os historiadores Toyin Falola e Matthew Heaton (2008), o escritor Chinua Achebe (2009; 2012), a escritora Chimamanda Adichie (2008; 2011) e o dramaturgo Wole Soyinka (2010; 2012)2.
2
Nas referências você pode conhecer melhor estes e outros livros e autoras citadas ao longo do artigo.
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Nesses estudos ressaltamos a importância da análise e apreciação de produções literárias e artísticas para discutir aspectos da história do continente africano. Intelectuais africanos começaram a apresentar seu pensamento ao mundo no século XX através de poemas, contos, romances, textos dramáticos buscando construir um repertório intelectual que apresentasse o continente africano a partir de suas próprias referências. Questionavam e enfrentavam as teorias e práticas racistas europeias que justificavam as atrocidades da colonização afirmando a inferioridade biológica e intelectual dos povos africanos. O ato de ler, escrever, recitar e dramatizar seus próprios textos trazia importante potencial descolonizador provocando profundas reflexões acerca das transformações em curso naquelas sociedades. O dramaturgo Wole Soyinka
Wole Soyinka é dramaturgo por excelência. Sua obra inclui além de diversas peças (textos e montagens dramáticas), poemas, romances, memórias e ensaios de crítica literária. É um dos escritores mais premiados do continente africano tendo sido contemplado com o Nobel de Literatura em 1986. Nasceu em 1934, em Abeokutá, cidade capital do estado de Ogum e região berço dos povos yorubás na Nigéria. Realizou seus estudos primários e secundários na Nigéria, incluindo o início de seu curso superior em Literatura no, então, Colégio Universitário de Ibadan, entre 1952 e 1954. Na Inglaterra, bacharelou-se na Universidade de Leeds, onde residiu entre 1954 a 1958. Voltou à Nigéria e à Universidade de Ibadan, num período crucial de transição para a independência do país, oficializada em 01 de outubro de 1960. Fundou um grupo teatral, passou a lecionar, pesquisar e se dedicar à dramaturgia, produzindo diversas montagens. Sua permanente postura crítica aos governantes que ascenderam ao poder lhe rendeu alguns anos de prisão, e diferentes períodos de exílio em outros
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países. Atualmente, após longa temporada no Estados Unidos, reside na África do Sul e viaja à Nigéria com regularidade. Soyinka, assim como diversos outros escritores e escritoras, intelectuais e artistas, oriundos de países africanos que emergiram no século XX, construíram suas obras em meio a dilemas, embates e expectativas que vivenciavam enquanto lutavam pela descolonização política, econômica, cultural. O principal desafio era, e ainda é, a descolonização epistemológica, ou seja, a afirmação de uma produção de conhecimento comprometida com conhecimento dos povos africanos. Os novos estados africanos herdaram fronteiras territoriais e instituições construídas pelos colonizadores organizadas a partir de um pensamento que, de modo geral, não valoriza o pensamento africano. Soyinka desenvolveu uma produção intelectual e artística conectada com a África contemporânea. Sua obra tornou-se referência mantendo a mordacidade e o sarcasmo como características marcantes. Naqueles anos de grande euforia pelas independências, Soyinka abordava questões que muitos ainda não estavam atentos, a exemplo da corrupção. É assim que em O Leão e a Joia Soyinka nos apresenta uma obra prima cômica e ao mesmo tempo mordaz, para refletir sobre as dinâmicas de uma sociedade nigeriana naqueles meses que antecediam a independência. Sua personagem Sidi representa alguns dilemas das mulheres africanas do período, nos permitindo refletir sobre a história dessas mulheres. Conhecendo O Leão e a Joia
Na trama, Sidi é cortejada por dois pretendentes com perfis bem diversos. Lakunle, o homem dos livros, é um professor que ensina na escola primária de Ilunjile.
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O professor tem quase 23 anos. Está vestido com um terno inglês de estilo antigo, puído, mas não rasgado, limpo, mas sem ser passado, obviamente um número ou dois menor que o dele. Usa uma gravata com um nó bem pequeno sobre a camisa branca, cujas pontas desaparecem sob um colete negro e brilhante. As calças são bastante largas e as pernas têm bocas de 60 centímetros que escondem parcialmente sapatos de tênis muito brancos. (SOYINKA, 2012, p. 18).
Baroka é o bale, chefe tradicional da aldeia, “(...) magro e musculoso, com uma barbicha branca, parecendo muito mais robusto que os seus 62 anos (...) (SOYINKA, 2012, p. 44)”. Mais do que idades, ocupações e estilos diferentes, cada um dos pretendentes encarna, aparentemente, a representação de determinado referencial civilizatório. Lakunle liga-se à modernidade ocidental ressaltando valores europeus, especialmente ingleses, numa referência direta aos colonizadores da Nigéria. Baroka representa a ancestralidade, o saber dos mais velhos, o poder tradicional. Ele traz a experiência com a idade representando o estilo de vida yorubano e africano. A trama se desenrola ao longo de um dia. O texto é dividido em três partes: Manhã, Meio-dia e Noite. Pela Manhã, logo na primeira cena, Sidi passa pela praça, centro da aldeia e próximo à escola, com seu balde d’água na cabeça, chamando a atenção dos estudantes. Lakunle toma o balde a pretexto de ajudá-la aproveitando para se aproximar. Segue-se um intenso e risível diálogo no qual Lakunle insiste em ser o melhor pretendente para Sidi. Utilizando um vocabulário cristão, o professor argumenta como a tornará uma mulher moderna, e mais bela, desde que siga os padrões ingleses de comportamento. Isso inclui o modo como ela deve se vestir e se comportar no casamento, os lugares que visitará e qual tipo de trabalho deverá exercer. Para tanto, Lakunle não admite pagar o “preço da noiva”, uma espécie de
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dote que o noivo deve oferecer à família da noiva. Um costume que acha “selvagem, ultrapassado, humilhante” (Soyinka, 2012, p. 28). Sidi, com seu estilo rápido e inteligente, questiona e rechaça todas as colocações de seu pretendente, chegando a ironizar a estratégia do professor que, segundo ela, apela para valores ocidentais como forma de se livrar do pagamento do preço da noiva.
Figura 2 - Maria Cleusa Silva (Sidi) e Samuel Santana (Lakunle). Demais integrantes ao fundo. Museu da Abolição, Recife, 2018 Fotografia: Joelson Souza @ParaMuitos
A conversa é interrompida por garotas que noticiam a chegada de uma publicação com belas fotografias de Sidi feitas por um homem estrangeiro que passou pela aldeia tempos antes. A revista causa grande reboliço: é motivo de festa para a comunidade; destaca Sidi, que passa a ser a pessoa mais famosa na aldeia; ridiculariza o bale fotografado junto à latrina. Ao Meio dia, o bale revela seu interesse em tornar Sidi uma de suas esposas. Ele envia sua esposa mais velha, “ a chefe das esposas” chamada Sadiku, para convencer Sidi a aceitar a nova proposta. Com a negativa de
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Sidi, Baroka revela estar infértil, de modo que, seguindo a tradição, se não comprovasse a virilidade, perderia também o poder. À Noite, a notícia da fraqueza de Baroka é motivo de comemoração para Sadiku. Sidi resolve zombar de Baroka indo até o palácio do chefe. Neste momento, Baroka revela, numa longa conversa, suas reais intenções com Sidi e Ilunjile. Baroka não é totalmente contra o “progresso” trazido pelo colonizador, como todos pensavam, mas quer usá-lo de modo fortalecer seu poder. A falsa notícia de sua infertilidade foi um pretexto para se aproximar e seduzir Sidi. Um pouco da história da Nigéria
Ilunjile é uma representação literária de uma aldeia, ou comunidade rural dos povos yorubás daquele período, na Nigéria, país da África ocidental ou África do Oeste, cujos povos têm longa história. Estima-se, atualmente, que este país seja composto por cerca de 200 milhões de pessoas, falantes de mais de 250 línguas maternas. Os grupos étnicos majoritários são os hauçás, igbos e yorubás que respondem por mais de 60% da atual população. Sua história registra a existência de antigos reinos, em diferentes temporalidades, como o de Kanem-Bornu ao norte, o reino do Benin à sudoeste e os reinos yorubás ao sul, com destaque para o Império de Oyó (Asiwaju, 2010). Os europeus exploram pessoas e os recursos dessa região desde o século XV, quando os portugueses se aproximaram do litoral para o tráfico de escravizados. A partir do final do século XIX, com a corrida colonial, a Inglaterra conseguiu estabelecer seu domínio transformando o atual território em protetorados (M’Bokolo, 2011). Devido à colonização inglesa, a língua oficial do país é o inglês. Milhares de pessoas dessa região foram enviadas como escravizadas para as Américas, especialmente ao longo do século XIX (M’Bokolo, 2009). No Brasil, os povos yorubás destacaram-se tanto pela quantidade
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expressiva aqui aportada, quanto por estabelecerem o culto aos orixás, uma das principais bases para as religiões de matriz africana, como o candomblé. Contudo, considerando a importância dos povos yorubás, que são ancestrais de muitos brasileiros e a importância das casas de candomblé, mantidas sob as mais cruéis e diferentes formas de perseguição (Nogueira, 2020), pouco sabemos sobre as dinâmicas na história desses povos no continente africano ao longo do século XX, especialmente quando tomaram força os processos de independência política e descolonização (Reis, 2017). O Leão e a Joia nos permite conhecer um pouco mais dessa experiência. Soyinka recria um cenário longe das grandes cidades. No palco, uma árvore frondosa, odan, marca o centro da praça onde se desenrola a maioria das cenas. De acordo com o prefácio de Ubiratan Araújo, trata-se de uma “obra africana” uma vez que “a apresentação em forma de uma peça de teatro permite que o texto literário tenha o suporte da linguagem cênica da música, da dança, da mímica e dos tambores” (Soyinka, 2012, p. 8). É nesta mímica que as personagens encenam fatos de outrora, a exemplo da passagem do fotógrafo pela aldeia ou do suborno de Baroka a um funcionário colonial. Soyinka faz uma conexão com o teatro tradicional nos lembrando que encenar não é algo estranho aos povos africanos. Há outros elementos como a natural referência das personagens aos orixás e a existência de mais palavras em língua yorubá, como a saudação que todos fazem quando encontram o bale: Kabiyesi3. Todas essas referências e recursos buscam construir uma história em que o leitor, leitora ou expectadora, sintam-se mais próximos da vivência daquela comunidade africana e entenda seus dilemas e expectativas. Um glossário ao final do livro explica palavras e expressões nigerianas.
3
Kabiyesi, que significa “discutir convosco é impossível” é utilizada para saudar os chefes. No candomblé é uma saudação ao orixá Xangô. Ver Soyinka, 2012, p. 140.
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A personagem Sidi em 03 cenas Cena 01: Sidi articulada
O diálogo entre Sidi e Lakunle, que abre a encenação na primeira parte do texto, é ao mesmo tempo forte e bastante hilário. Na disputa pelo balde, o professor apresenta muitas questões colocando-se superior aos outros por ser um homem escolarizado com acesso aos conhecimentos europeus. Sua fala oferece a venda, quase ingênua, de pressupostos do colonizador que ressaltam o estilo de vida e comportamento europeu e desconsidera o estilo de vida africano/yorubano. Para Lakunle, aceitá-los melhoraria a vida de todos. Já Sidi não se intimida com a colocações do professor mostrando-se rápida e arguta. Ela lhe mostra como algumas considerações simplesmente não fazem sentido e como outras são desnecessárias. Sidi: E agora, se a sua lição Já acabou, posso pegar meu balde de volta? Lakunle: Ah, não!... Eu já lhe disse para não carregar Coisas pesadas na cabeça. Mas você é tão teimosa Como uma cabra analfabeta. Faz mal à espinha E encurta o seu pescoço. (SOYINKA, 2012, p. 19) [...] Lakunlê: Por favor, Sidi, não se zangue comigo [...] São os cientistas que provaram. Está nos meus livros: As mulheres têm o cérebro menor que o dos homens. É por isso que são chamadas de sexo fraco. Sidi: O sexo fraco é assim? Então é a gente mais fraca Que bate a mandioca no pilão pra fazer farinha? Que passa o dia inteiro plantando painço na roça Com uma criança amarrada nas costas?... (SOYINKA, 2012, p. 23)
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Lakunle: Mas não se preocupe. Daqui a um ano ou dois Vocês terão as máquinas capazes de pilar Toda a mandioca. Sidi: Hum-hum... Sei muito bem que você Quer fazer o mundo virar de cabeça para baixo... (SOYINKA, 2012, p. 24)
É essa postura de Sidi, ao mesmo tempo bela, autoconfiante e sábia que encanta. Esta cena, entre Sidi e Lakunle, pela clareza do diálogo, e pelo tom satírico, representando o homem africano colonizado e a mulher tradicional resistente, tende a ser a mais encenada, reproduzida ou comentada do livro. A partir dela destacamos dois aspectos. A beleza de Sidi é um elemento importante para a trama. Soyinka a descreve com as características típicas de uma jovem mulher yorubana/africana com seus cabelos crespos trançados, sua pele escura, o padrão de sua vestimenta mostrando os ombros e o colo... tudo contribui para entendermos o que é uma mulher bela naquela sociedade. Cabe destacar que o perfil alto e esguio é uma característica dos povos yorubás. Sidi se contrapõe às imagens escravistas e coloniais das mulheres africanas que circulavam pela Europa, depois Américas e África, cujos corpos foram associados à selvageria, feiura, exotismo e erotismo. Neste primeiro momento da trama, quando são apresentadas as características físicas de Sidi, não há uma relação automática com a imagem de uma mulher disponível sexualmente, como coisa ou mercadoria a ser utilizada (Casimiro, 2014, p. 161). A beleza de Sidi contribui para questionar uma imagem negativa sobre a mulher africana que foi utilizada para justificar as diversas violências e atrocidades cometidas ao longo de séculos. No século XIX, citamos o terrível caso de Sarah Baartman, uma mulher do povo khoisan, África do Sul,
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que teve seu corpo exibido, exposto e violentado em cidades como Londres e Paris, e mesmo com sua morte precoce, seus órgãos genitais foram conservados e exibidos em museus até poucas décadas atrás (Kechiche, 2010).
Figura 3 – Sabrina Barbosa (Sidi), Mirella Cibalde e Letícia Serrano (Garotas da Aldeia) e Anderson Justino (Lakunle) Biblioteca Central/UFPE, 2018 Fotografia: Sabrina Barbosa @_sasabasbosa
Sidi, que não tem dúvidas em relação à própria beleza, nos ajuda a mostrar como o olhar colonial e racista insiste em exotizar e inferiorizar corpos das mulheres negras tentando encaixá-las em padrões eurocêntricos. Sidi não está interessada em ser “uma dama” dos sonhos colonizados de Lakunle, que “usa sapatos de salto alto e usa batom vermelho nos lábios. E seus cabelos são alisados como em uma foto de revista” (Soyinka, 2012, p.30).
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Este texto de Soyinka contribui para fazer circular a imagem que uma mulher tem de sua própria beleza uma vez que constrói, na trama, um perfil de uma mulher nigeriana aos olhos da sua comunidade. Ou seja, Sidi é uma personagem que outras mulheres do continente africano podem reconhecer. Portanto, este texto literário contribui para a circulação de uma imagem da mulher africana oposta àquelas que o colonizador fazia circular. Muitos anos se passariam até que as próprias mulheres africanas conseguissem produzir e circular seus textos literários, mas, atualmente, diversas são as protagonistas que emergem com as escritoras nigerianas que nos garantem ótimas leituras, futuras dramatizações e importantes reflexões históricas. Sidi é inovadora pelo diálogo que estabelece com Lakunle mostrando capacidade de reflexão. Ela não se deixa intimidar por nenhuma das colocações do professor que lhe propõe uma vida diferente daquela comum na comunidade. Para Lakunle, Sidi não deveria se submeter aos costumes “selvagens”, como trabalhar carregando coisas pesadas, comer utilizando as mãos ou vestir roupas que mostram os ombros. Suas ideias reproduzem ainda um lugar de subalternidade para a mulher, considerada o “sexo frágil”. Sidi não entende porque deveria abandonar o trabalho na lavoura e processamento dos grãos4, comum para muitas mulheres africanas, para ter uma vida dentro de casa aguardando o sustento do marido como oferecia o professor Lakunle. Sidi desconsidera essas “bobagens”, questiona se são loucuras ou sonhos e o manda ir para as cidades contar as mulheres de lá “esses planos com que você fica diariamente me oprimindo” (Soyinka, 2012, p. 25). Mas, ainda que se considere superior por conhecer os valores ocidentais, Lakunle é o motivo de troça na aldeia, do qual todos riem e chamam de bobo.
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Devemos acrescentar o comércio como prática comum para mulheres africanas.
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Lakunle não goza de grande status ou recursos, trabalhando como professor de uma escola primária. Portanto, para cumprir com o “preço do noivado” de Sidi, exigido nas relações matrimoniais da aldeia, teria que recorrer ao trabalho na lavoura como lhe recomendou Sadiku. O mundo e as ideias ocidentais surgem para o precário professor a partir dos livros e do que ele pode observar em algumas cidades nigerianas, como a grande Lagos. Ao que parece, o personagem não teria experimentado o péssimo tratamento dispensado aos africanos, estudantes ou não, comum nas cidades europeias (Panorama, 2019). Ele promove uma reflexão sobre a limitação de intelectuais africanos educados a partir de conceitos europeus: sem valorizar a experiência africana como poderiam contribuir para suas comunidades? A partir da leitura e análise da primeira cena aqui descrita, nosso grupo Afrika’70, aceitou o desafio de dramatizá-la, sendo o perfil de Sidi o estímulo determinante para interpretá-la. Nesta cena, Sidi é dona do corpo e da voz. Sua personagem se impõe. Ela é o centro da cena e da narrativa. Naquele momento, a interpretação de Sidi permitiria a uma mulher negra colocar-se no centro do palco, da trama e da história. As estudantes negras puderam, com essa apresentação teatral, experimentar um lugar central invertendo uma representação cotidiana em que as mulheres negras são invisibilizadas, representadas sem beleza, sem inteligência ou voz. Essa face de Sidi, bela e inteligente, ainda é um desafio nas mais diversas representações contemporâneas das mulheres africanas e afrodescendentes. Portanto, a encenação desse texto, além de provocar reflexões sobre a violência e superficialidade das ideias coloniais que tanto oprimem as mulheres negras, permitiu às estudantes que participaram da dramatização experimentar um lugar de centralidade, de forma segura, em relação às suas características físicas e seus potenciais intelectuais.
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Em suma, o resultado da leitura dramática foi bastante satisfatório e as duas intérpretes de Sidi foram brilhantes. Maria Cleusa Silva e Sabrina Barbosa fizeram o melhor possível para a interpretação da personagem com um estudo detalhado do texto. A cada apresentação, quando tinham oportunidade de usar o longo vestido e o vistoso turbante, dedicavam-se cuidadosamente à maquiagem e aos acessórios tornando-se cada vez mais lindas e ornamentadas. Contavam com o auxílio das outras integrantes do grupo que contribuíam para deixar Sidi no lugar de destaque que a trama a colocava.
Figura 4 – Denise Melo (Sadiku) e Maria Cleusa Silva (Sidi). Demais integrantes ao fundo. Museu da Abolição, Recife, 2018. Fotografia: Joelson Souza @ParaMuitos
Uma estética africana de arrumação dos cabelos com tranças ou amarrações com turbantes e uma pintura facial foi requisito para todas as atrizes e novidade para muitas delas. Mesmo após muitos estudos e ensaios, a dramatização foi melhorando a cada apresentação. A maioria dos integrantes do grupo publicou fotos e depoimentos em suas redes sociais destacando a experiência, a exemplo Mayra Medeiros, experimentando turbantes: “Obrigada. Amei usar. Por que nunca usei? Muito bom mesmo.
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Lindo e fácil de fazer” (14/08/2018). E de Maria Cleusa Silva, após apresentação inaugural no Museu da Abolição: “Bastidores da peça. Parabéns a todos e a professora pela iniciativa! Estou muito feliz. As pessoas que levei adoraram também. ” (16/08/2018). Cena 02: Sidi maravilhada
Quando tem conhecimento que sua imagem está estampada em fotografias numa publicação trazida pelo fotógrafo estrangeiro, Sidi é tomada por uma grande alegria. Não bastasse estar naquele livro, são diversas as suas fotos e em tamanho ampliado, o que significava sua fama pela capital e por terras estrangeiras. A joia de Ilunjile estava mais destacada que o bale Baroka, quase humilhado numa fotografia ao lado da latrina. Sidi: Quem foi que voltou? Primeira Garota: O estrangeiro. O homem do mundo exterior. [...] Sidi: E por acaso ele trouxe...? Primeira Garota: As imagens? Trouxe todas elas!... (SOYINKA, 2012, p. 33-4)
As fotografias foram feitas por um homem estrangeiro que passou pela comunidade tempos antes. O episódio é apresentado através de uma mímica que as personagens se organizam para representar, no qual Lakunle faz o papel do fotógrafo e Sidi é a fotografada. Tudo é descrito em detalhes no texto para que os atores saibam como proceder no palco. É um teatro dentro do teatro. Esse recurso, utilizado mais de uma vez por Soyinka, oportuniza que a dança, a música e práticas teatrais tradicionais façam parte da trama. O homem branco inglês não tem nome, não é uma personagem e somente aparece nas lembranças ou nesses momentos de mímica.
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Contudo, a trama mostra o impacto que suas ações têm sobre aquela comunidade. Trata-se de alguém que estava bêbado, com um problema na motocicleta e, aparentemente perdido, parou naquelas terras. Tentou fotografar Sidi tomando banho nua no rio e, após ser descoberto pela comunidade, fez as suas fotos durante a recepção de boas-vindas. A situação é típica de muitos viajantes europeus que se aventuravam pelo interior do continente africano, retornando com informações, materiais e imagens que podiam interessar na metrópole.
Figura 5 - Milena Santiago, Thyalle Monike e Mirella Cibalde (Garotas da Aldeia), David Blackburn (fotógrafo) e Maria Cleusa Silva (Sidi). Teatro Milton Baccarelli/UFPE, 2018. Fotografia: Joelson Souza @ParaMuitos
O tratamento que o fotógrafo dispensa a Sidi representa o olhar do homem colonizador europeu para a mulher africana. Ao tentar fotografála nua, sem qualquer consentimento ou autorização e a falta de atenção para outras personalidades do grupo, a exemplo do bale Baroka, nos faz refletir como esse olhar colonial focou especialmente no corpo dessas mulheres. Para os colonizadores, aquelas imagens reforçavam os preconceitos e estereótipos que associavam as mulheres africanas ao exotismo, à sexualidade, como uma coisa ou objeto a ser usado. A circulação de fotografias
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é uma prática introduzida com a colonização na qual mulheres e homens africanos são transformados em objetos. Contudo, Sidi se apropria e amplia os limites do olhar europeu já que, para ela, aquelas imagens funcionam como o reconhecimento de sua beleza. Não por acaso, na trama, a imagens seduzem a comunidade de modo a significar automática fama de Sidi e motivar uma festa. A publicação tem todas a características de uma revista, mas é tratada como livro numa referência direta à produção escrita e imagética do colonizador. Uma vez que conhecimentos e tradições africanas são preservados e veiculados através da oralidade (Bá, 2010), a introdução de fotografias, revistas e livros traziam consigo a visão, pensamento e línguas coloniais que foi aos poucos sendo imposta, seduzindo, ou sendo apropriada pelos povos africanos. Conforme nos explica o fotógrafo e artista visual nigeriano Mudi Yahaya, essa representação imagética das mulheres africanas, através de fotografias embranquecia suas peles porque os filtros inicialmente utilizados não haviam sido criados para captar esses tons. Essa prática, de representar as mulheres africanas com pele clareada ou embranquecida, sempre distante dos tons originais, tornou-se um padrão de modo a impactar seriamente a imagem que mulheres negras têm de si próprias ao redor do mundo. O desejo, que muitas delas têm, de terem a pele mais clara é uma evidencia dessa violência colonial. Vale ressaltar que a independência dos países africanos e o fim da colonização política não significou um rompimento com as ideias coloniais, como nesta situação da representação equivocada das mulheres negras.
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Figura 6 – Isabelle Ferreira (Sadiku) e Sabrina Barbosa (Sidi). Biblioteca Central/UFPE, 2018
Na Nigéria, em particular, essa situação deu origem uma prática generalizada entre as mulheres de utilização de produtos de maquiagem e cremes com as mais diversas – e perigosas – formulas para o clareamento da pele (Effiong, 2018). Soyinka, ao colocar a publicação das fotografias de Sidi como um evento decisivo na trama, nos faz refletir sobre como a produção e circulação de imagens das mulheres africanas criadas pelos europeus teve, e tem, um impacto na vida dessas mulheres que, paulatinamente tomaram o que viam nessas imagens como referência de beleza. Com as fotografias, Sidi sente-se superior a todos, incluindo o bale. Essa postura se assemelha àquela de Lakunle? Portanto, acredito que é preciso, quebrando esse pensamento colonial, criar e fazer circular imagens comprometidas com a realidade dessas mulheres, inclusive no espaço escolar. Intelectuais e
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escritoras, fotógrafas, cineastas, jornalistas, artistas e ativistas africanas têm um papel decisivo nesse processo, já que podem representar o modo como se veem, valorizando seus corpos, sua pele, sua estética e história. Sidi promove a reflexão sobre a beleza da mulher africana antes e depois da intervenção colonial. No palco, nossas atrizes que interpretaram Sidi puderam dramatizar a contradição de sentirem-se bela e terem que lidar com um olhar estrangeiro ao tempo em experimentavam os olhares de um público diversificado: acaso as acharam belas? Alterando o texto de Soyinka, inserimos o fotógrafo, interpretado por David Blackburn, como personagem sem fala que passeia pelo palco fazendo imagens enquanto as atrizes atuavam. Fora do palco, infelizmente, duas garotas do grupo foram alvo de discriminação: quando se deslocavam para uma apresentação fora da Universidade, já arrumadas com turbantes e maquiagem, mas ainda sem a roupa específica, tiveram que ouvir comentários depreciativos de um transeunte. Nesse episódio, refletimos com o grupo sobre os atos de discriminação racial, especialmente quando utilizamos elementos estéticos africanos que, por serem valorizados pelas religiões de matriz africana, tornam suas praticantes o alvo prioritário da intolerância religiosa e racismo.
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Cena 03: Sidi enganada
Figura 7 - Milena de Cássia e Kimberly Costa. Teatro Milton Baccarelli/UFPE, 2018. Fotografia: Milena de Cássia @millacassiaa
Sidi, convencida que é mais importante que todos, vai ao palácio até Baroka para zombar de sua condição de homem sem virilidade. Esta cena se passa no período da noite e é a mais longa de todas. Baroka, que já havia aparecido rapidamente em outras cenas da trama, tem a oportunidade de dialogar tranquilamente com Sidi exercitando a sabedoria de um homem mais velho que detém o poder. Sidi chegou ao palácio e adentrou o quarto sem ser anunciada, esperando um Baroka envergonhado de sua nova condição. Contudo, é Baroka quem conduz o diálogo, primeiro não lhe dando tanta importância, depois dialogando sobre um possível pretendente para Sidi – que na verdade tratava-se do próprio Baroka, embora ele fingisse não saber. Por fim, ele a elogia e lhe mostra os esforços para a construção de uma máquina para fabricação de selos que levariam notícias de Ilunjile para o mundo. Isso é
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uma novidade porque, até então, a imagem de Baroka frente aos demais personagens era de alguém avesso às inovações. Para finalizar, Baroka imagina a fotografia de Sidi estampando os futuros selos. Aquelas novidades deixam Sidi maravilhada com o “progresso” que Baroka promoveria em Ilunjile ao prometer se apropriar daquelas imagens para benefício da comunidade. Esta cena finaliza com Sidi repousando sua cabeça no ombro do bale. Em toda esta cena, que caminha para o desfecho da história, Sidi deixa de ser a protagonista, uma vez que seu plano de troça cai por terra diante da sabedoria ardilosa do bale. Aquela personagem que se destacava frente a todos pela determinação e altivez dá lugar a uma coadjuvante dos desejos e interesses políticos do sexagenário Baroka. Ele, aproveitando-se de certa arrogância de Sidi, propõe difundir estrategicamente aquelas fotografias ao tempo em que reafirmaria seu poder e virilidade esposando a mulher mais bonita e famosa da comunidade. Esta cena nos faz refletir sobre os desafios enfrentados pelas mulheres
africanas
quando
estão imbuídas de valores
individuais,
descomprometidos com a comunidade, reproduzindo a lógica colonial. Todo o protagonismo e a articulação de Sidi, demonstrados ao longo da trama, não prevalecem quando encontra com o velho homem longamente acostumado ao poder e à submissão de todos. Baroka, que demonstra dialogar com os colonizadores quando acha necessário, planeja utilizar aquelas fotografias feitas pelo homem estrangeiro. Ao seu modo, ele também se beneficia da beleza de Sidi. Se lembrarmos bem todos os homens da trama, Lakunle, o estrangeiro e Baroka, cada um ao seu modo, querem ter para si a beleza de Sidi. Baroka: Você consegue imaginar, Sidi? Dezenas de milhares destas fotografias delicadas
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Cada uma difundindo a lenda de Sidi? [...] Espero que você não ache uma carga Pesada demais, ter de carregar o correio do país Com toda a sua beleza e elegância. [...] Já faz um tempo bastante longo Que os moradores da aldeia contam histórias Sobre o atraso de Ilunjile [...] Mas agora, se fizermos isto, será uma prova De que fazemos mais que qualquer outra aldeia! (SOYINKA, 2012. p.113,114)
Sidi, inicialmente, mostra-se indignada por ter sido enganada por Baroka. Logo em seguida, aceita o fato de que ele é o homem forte e, portanto, a melhor opção para estar ao seu lado. Essa conclusão nos faz refletir que, mesmo diante das limitações impostas à vida de Sidi, que a partir de então será ao lado de um homem cujos interesses e vontades vem primeiro, seu potencial para pensar, agir e transformar não pode ser ignorado ou suplantado.
Figura 8 - Maria Cleusa Silva (Sidi) e João Paulo Silva (Baroka). Teatro Milton Baccarelli/UFPE, 2018. Fotografia: Joelson Souza @ParaMuitos
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Sua presença tem que ser garantida, embora ela tenha que negociar, no novo lugar a ser ocupado. Isso ganha maior relevância quando lembramos que esse texto surgiu num momento em que todos pensavam acerca dos rumos do novo país. Com O Leão e a Joia, Soyinka promovia um debate sobre o papel indispensável da mulher naquela história africana em mudança, uma história que estava sendo escrita. Deste modo, a atuação e agência dessas mulheres não deveria ficar limitada às expectativas desses homens, estrangeiros, colonizados ou detentores do poder tradicional. A experiência de Sidi também deveria acrescentar algo novo à experiência das mulheres da geração anterior. Para concluir
Sidi, nossa protagonista, nos desafia a conhecermos as histórias de muitas mulheres africanas que nasceram no século XX, que enfrentaram suas lutas e viveram intensas transformações e vêm deixando, porque muitas delas estão vivas, um legado que não podemos ignorar. Nós temos o direito à história dessas mulheres e o dever de investigá-la e visibilizála. Ler, encenar, viver e aprender com Sidi, nas salas de aula, pode ser um despertar para o protagonismo das mulheres africanas que constroem a história contemporânea e tem muito a ensinar a todas as mulheres do mundo, em especial a nós mulheres afrodescendentes.
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Figura 9 - Equipe da Leitura Dramática de o Leão e a Joia. Teatro Milton Baccarelli/UFPE, 2018. Fotografia: Joelson Souza @ParaMuitos
Ao final de cada apresentação, uma roda de conversa entre o público e o elenco, tornou-se a oportunidade para trocar informações e para ouvir como a trupe entendia o espetáculo. Diferentes foram as considerações reveladas na conversa na qual os estudantes tendiam a reproduzir as explicações do prefácio do livro. Sempre destacavam Sidi como uma "modernizadora da tradição" ressaltando o potencial transformador dessa personagem. Nessas conversas, as estudantes perceberam que a curiosidade ensejada com aquele trabalho requeria de todos um maior aprofundamento dos estudos da história contemporânea da Nigéria. Para a historiadora e expectadora Graziella Queiroz, “foi uma excelente atividade de convocação para o estudo de África” (03/07/2018). No fim das contas, Sidi, fez crescer nosso desejo pela história. Referências: Literárias: ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. A flecha de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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______. A paz dura pouco. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ADICHIE, Chimamanda. No seu pescoço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 ______. Meio Sol Amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Hisbisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ARIMA, Lesley Nneka. O que acontece quando um homem cai do céu e outros ensaios. São Paulo: Kapulana, 2018. EMECHETA, Buchi. As alegrias da maternidade. Porto Alegre: Dublinense, 2018. ______. Cidadã de segunda classe. Porto Alegre: Dublinense, 2018. EMEZI, Akwaeke. Água doce. São Paulo: Kapulana, 2019. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006. SOYINKA, Wole. O Leão e a Joia. São Paulo: Geração Editorial, 2012. Demais livros e capítulos: ACHEBE, Chinua. Educação de uma criança sob protetorado britânico: ensaios. São Paulo: Ática, 2012. ASIWAJU, A. Daomé, pais iorubá, Borgu e Benim no século XIX. In: AJAYI, J (Dir.). África do século XIX a 1880. Brasília, UNESCO, 2010. Vol. VI. p. 813-841. BA, Hampatê. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Dir.). Metodologia e pré-história da África. In. História Geral da África. 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010. Volume I. p. 167212.
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Videográficas: EFFIONG, Etim. Skin. Nigéria, 2018. 76 min. KECHICHE, Abdellatif. Vênus Negra. França, 2010. 159 min. NASCIMBENI, Carlos. Mulheres africanas – A rede invisível. Brasil, 2013. Sites: https://filosofia-africana.weebly.com/textos-africanos.html https://ieafricaufpe.wordpress.com/serie-brasil-africa/ https://unesdoc.unesco.org/
8 Reconhecendo as grafias negras através da leitura da paisagem Janete Regina de Oliveira 1 Introdução
O texto apresentado nasceu das ações e reflexões empreendidas, desde 2010, no âmbito dos seguintes projetos de extensão universitária, do Departamento de Geografia da UFV: Reconhecer grafias e tecer leituras sobre o mundo: africanidades no universo escolar de Teixeiras-MG (PIBEX-UFV, 2010); Reconhecer grafias e tecer leituras sobre o mundo: africanidades no universo escolar (PIBEX-UFV, 2011)2; Reconhecer grafias e tecer leituras sobre o mundo (PROEXT, 2012) e Grafias negras na Zona da Mata Mineira (PROEXT, 2013)3. Tais projetos tinham como premissa discutir a dimensão racial no Ensino de Geografia, com o intuito de fortalecer o diálogo com a educação básica ao envolver os professores em formação (estudantes de Geografia), professores de Geografia nos níveis fundamental e médio e os educandos desses níveis de ensino. A proposta surgiu diante da necessidade de identificar as contribuições da Geografia para efetivação da Lei Federal n. 10.639, de 9 de janeiro de 20034, e pelas diretrizes definidas pelo Conselho Nacional de Educação 1
Departamento de Geografia, Universidade Federal de Viçosa.
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Ações realizadas em parceria com o Programa de Extensão Universitária “Paisagem e memória na Zona da Mata Norte Mineira”, coordenado pelos professores Edson Soares Fialho e Eduardo José Pereira Maia. 3
Ações realizadas em parceria com o Programa de Extensão Universitária “Reconhecer grafias e tecer leituras sobre o mundo”, coordenado pela professora Maria Isabel de Jesus Chrysóstomo. 4
Dispõe sobre a inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira no Ensino Fundamental e Médio, visando à implementação do currículo escolar no sentido de reconhecer e valorizar a cultura e identidade negras.
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sob a RESOLUÇÃO Nº 1, DE 17 DE JUNHO DE 2004. Essa lei, Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores. Diante disso, as atividades foram construídas coletivamente, a partir da articulação com os conteúdos abordados nas escolas e definidos pelas e pelos professores. Assim sendo, a organização do trabalho consistia no estudo sistemático sobre a relação entre a Geografia e a racialidade, acompanhamento das aulas, preparação e realização de atividades envolvendo professores, licenciandos (bolsistas e voluntários) e coordenadora do projeto. A seguir, ressalto quais as especificidades da Geografia na discussão sobre as relações raciais na Educação Básica para, adiante, apresentar uma das propostas desenvolvida junto às turmas do Ensino Fundamental II, de uma escola do município de Viçosa. Racismo, Diversidade e o Ensino de Geografia
O racismo é um dos temas mais desafiadores de ser abordado em todos os níveis de ensino.Tal desafio tem origem no mito da democracia racial, segundo o qual nossa condição miscigenada já atestaria a ausência de conflitos entre os diferentes grupos que compõem a população brasileira. Esse racismo velado (racismo estrutural) acaba invisibilizando os sujeitos negros e, consequentemente, a violência dele decorrente. Jovens e crianças são mais diretamente afetados, pois, na presença de um discurso que apenas enfatiza a escravização de seus antepassados, seguem acreditando no discurso oficial e naturalizado que reforça a superioridade do elemento de origem branca, masculina e eurocentrada.
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Dessa forma, a partir da compreensão de que se trata de assunto delicado, os projetos sempre tiveram como ponto de partida a valorização das contribuições negras para a construção da sociedade brasileira, com o objetivo de fomentar um contra-discurso que pudesse contribuir para elevar a autoestima dos estudantes em relação à sua ancestralidade. Ao mesmo tempo, buscou-se criar pontes para que estudantes, funcionários e professores não negros pudessem compreender e participar na construção de um discurso antirracista. Como resultado da luta dos movimentos negros que sempre reivindicaram ter visibilidade em todos os âmbitos da vida nacional, em 1997 os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) vão trazer à baila a preocupação com a abordagem sobre o pluralismo cultural que marca a sociedade brasileira. Nesse sentido, vai aparecer como um tema transversal a todas as disciplinas: Historicamente, registra-se dificuldade para se lidar com a temática do preconceito e da discriminação racial/étnica. O país evitou o tema por muito tempo, sendo marcado por “mitos” que veicularam uma imagem de um Brasil homogêneo, sem diferença, ou, em outra hipótese, promotor de uma suposta “democracia racial”. Na escola, muitas vezes, há manifestações de racismo, discriminação social e étnica, por parte de professores, de alunos, da equipe escolar, ainda que de maneira involuntária ou inconsciente. Essas atitudes representam violação dos direitos dos alunos, professores e funcionários discriminados, trazendo consigo obstáculos ao processo educacional, pelo sofrimento e constrangimento a que essas pessoas se veem expostas (BRASILb,p. 20 1997).
Por sua vez a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) procura reforçar a necessidade de construção do raciocínio geográfico, que deve ser trabalhado na escola, assim sendo, o objetivo da Geografia deve ser o de
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desenvolver o pensamento espacial, estimulando o raciocínio geográfico para representar e interpretar o mundo em permanente transformação e relacionando componentes da sociedade e da natureza. Para tanto, é necessário assegurar a apropriação de conceitos para o domínio do conhecimento fatual (com destaque para os acontecimentos que podem ser observados e localizados no tempo e no espaço) e para o exercício da cidadania. (BRASIL, 2017, p. 358).
Dessa forma, propõe que os conteúdos sejam abordados a partir de unidades temáticas, dentre os quais destacamos “o sujeito e o seu lugar no mundo” e “conexões e escalas”, cujos objetos de conhecimento propiciam uma leitura racializada do espaço. São eles: identidade cultural; fenômenos naturais e sociais representados de diferentes maneiras; formação territorial do Brasil e características da população brasileira; diversidade da população mundial e deslocamentos populacionais; a hegemonia europeia na política, na economia e na cultura; as manifestações culturais na formação populacional. Apesar de consideráveis avanços, principalmente a partir da implementação da Lei Federal 10.639/03 e das orientações presentes no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), muitos materiais e matrizes curriculares continuam a reproduzir uma imagem estereotipada e inferior do negro em nossa sociedade. Portanto, um maior aprofundamento nos estudos sobre a contribuição dos africanos e afrodescendentes para o desenvolvimento da sociedade no Brasil por certo constitui um elemento importante para a desconstrução desses estereótipos negativos sobre os negros. A instituição escola, desde seus primórdios, assumiu o papel de socialização/transmissão do conhecimento produzido pela humanidade. Essa atribuição, contudo, tem se alterado ao longo de sua existência. Isso se explica pela ação de fatores culturais, socioespaciais e históricos.
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Notadamente, no que se refere à realidade brasileira, a escola tem contribuído de forma contundente para a manutenção da ideia de homogeneidade cultural. Essa situação também pode ser observada em outros países de origem ibero-americana, uma vez que a “construção dos estados nacionais latino-americanos supôs um processo de homogeneização cultural em que a educação escolar exerceu um papel fundamental, tendo por função difundir e consolidar uma cultura comum de base eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades” (CANDAU 2011, p.242). Entretanto, nas últimas décadas, movimentos sociais organizados têm buscado mais espaço e reconhecimento na sociedade brasileira. A escola também vivencia, não sem conflito, os impactos desse movimento, notadamente através do currículo. A publicação de orientações curriculares oficiais, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998); da BNCC (BRASIL, 2017) e do estabelecimento de diretrizes para a política de inclusão escolar com foco na questão étnico-racial (principalmente a partir de 2005), tem promovido certo incômodo no ambiente escolar ─ situação observada a partir do acompanhamento dos estágios supervisionados e das atividades de ensino e extensão universitárias. Frente às novas demandas de formação incorporadas ao currículo (étnico raciais, ambientais, de direitos humanos, dentre outras), os profissionais de educação têm feito diversas queixas, indicadoras da dificuldade em abordar diferentes temáticas, para as quais, segundo os mesmos, não foram preparados ou não dispõem de material pedagógico. Sem menosprezar tais queixas, acreditamos que esse é um dos argumentos que sustentam o discurso de que vivemos em uma sociedade miscigenada e sem conflitos raciais. Tal problemática foi detectada em nossas atividades na escola quando, durante uma oficina em que buscávamos discutir o apagamento das grafias negras e indígenas na Zona da Mata Mineira, uma
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professora teceu o seguinte comentário: “Vivemos num mundo globalizado em que as pessoas têm contato com o mundo todo, por isso não cabe falar de racismo e preconceito. No Brasil todo mundo tem sangue das três raças”. Infelizmente, esse não é um pensamento isolado, pois a manutenção de um referencial, que é masculino, branco e europeu na escola (e que reverbera para a construção de uma identidade distorcida sobre o que seja ser negro ou indígena no Brasil) ainda prevalece. Tal situação pode ser comprovada através da pesquisa realizada em 2009 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas—FIPE, intitulada “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar”, que identificou altos índices de ocorrência de discriminação e preconceito com relação às categorias étnicoracial, gênero, geracional, territorial, necessidades especiais (deficiência física), socioeconômica e orientação sexual (MAZZON, 2009). Ao compreendermos a escola como espaço de convergência de diferentes culturas, passamos a considerar, também, os educandos não somente como sujeitos de aprendizagem, mas como portadores e produtores de cultura. As referências culturais negras, muitas vezes, não são valorizadas na escola—o que contribui para o fortalecimento do sentimento de inferioridade de meninas e meninos negros. Em alguns momentos, as manifestações da cultura negra se restringem às comemorações de datas específicas, como “o 13 de Maio” ou “20 de Novembro”. Persistem ainda, portanto, práticas que insistem em abstrair, até mesmo das comemorações (lugar da memória), tanto o exercício da reflexão crítica sobre a situação dos negros no Brasil como, também, a contribuição destes para a construção do território nacional. Nesse sentido, entendemos que o trabalho junto aos estudantes da escola básica é essencial para a compreensão da importância dos negros na sociedade, bem como para a construção de olhares sobre a diversidade étnica brasileira. Com relação a esse último ponto, ganha destaque o
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desafio de se buscar no processo sócio-histórico de constituição da nação brasileira (representação simbólica da unidade territorial, linguística e cultural), formas particulares de expressão e representação de identidades étnico-culturais que coloquem em evidência a problemática em torno da afrodescendência. Neste aspecto, as considerações de Gonçalves e Silva (2006, p.) nos ajudam a entender a importância de debruçarmos sobre a “própria herança buscando dialogar com o passado para descobrir a própria identidade” e, dessa forma recuperar os traços negros excluídos pela construção da representação de modernidade brasileira. Esses traços podem ser identificados em diferentes escalas espaciais, pois, segundo Corrêa (2003, p. 175), as marcas culturais manifestam-se espacialmente (nos lugares e territórios) e apresentam significados atribuídos pelos diversos grupos sociais, “em seu processo de existência, aos objetos e ações em suas espaçotemporalidades”. Para identificar as marcas culturais dos negros, é Cavalcanti (2002) que nos indica, a partir das ideias de Vygotsky, a importância da escola no processo de construção dos conceitos, para que o aluno possa adquirir a consciência reflexiva. “Os conceitos científicos têm o papel de propiciar a formação de estruturas para a conscientização e ampliação de conceitos cotidianos, possibilitando, assim, o desenvolvimento intelectual” (op cit p. 28). Portanto, como prática social, a geografia faz parte da cotidianidade dos homens e, nessa esteira, um conjunto de saberes sobre o espaço é construído nesse processo. Dessa forma, cabe à escola e ao Ensino de Geografia fornecer instrumentos para que o cidadão possa compreender a complexidade presente nesse espaço. Complexidade essa marcada por referências tecnológicas, culturais, sociais, econômicas e étnicas. Nesse sentido, cabe questionar o papel tradicional desempenhado por abordagens que marginalizam as discussões relativas aos aspectos culturais e relações raciais, provocando direta e indiretamente a aceitação - por parte
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dos alunos - de uma ordem social em que ocorre a naturalização das desigualdades socioculturais (GONÇALVES, 2006). Nilma Lino Gomes conclui que a intenção dessas ações, além de promover a valorização da cultura negra no ensino básico, é despertar o respeito para com as diferenças e trabalhar a construção da identidade de cada indivíduo em formação. Afinal, “o fato de sermos diferentes, enquanto seres humanos e sujeitos sociais, talvez seja uma das nossas maiores semelhanças” (GOMES, 2003, p.3), sendo esses aspectos de vital importância para a constituição de uma sociedade mais tolerante e consciente, em um país tão marcado pela diversidade. Nesse sentido, a partir da compreensão desse lugar de formadora de professores para a educação básica e dos desafios cotidianos que devem ser engendrados na construção de uma educação antirracista é que refletimos sobre invisibilidade da população negra na paisagem de Viçosa. Para isso será necessário fazer uma contextualização da invisibilidade dos negros na sociedade brasileira. Afinal, os apagamentos ocorrem como decorrência da supremacia de uma dada cultura em relação a outras. O texto de Michel Pollak (1989) e particularmente revelador para a compreensão dos dispositivos de lembranças e esquecimentos da memória de um dado grupo social. Esse autor destaca a importância da história oral como método alternativo para a mudança do foco da história (memória) oficial para a história das minorias, silenciadas na memória nacional. Dessa forma, propicia um discurso contra-hegemônico numa “sociedade englobante”. Nos dispositivos de construção das memórias (nas lembranças) estão presentes as zonas de sombra, os silêncios e os não ditos, o que constitui A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável […] separa uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de
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grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor (POLLAK, 1989,p.8).
Nos projetos que desenvolvemos, as atividades realizadas partiam sempre da indagação sobre os conhecimentos que as famílias possuíam sobre o município, independente da temática, buscando sempre associar o conhecimento cotidiano com o conhecimento científico. Paisagens e os modos de resistência negra
Durante as atividades desenvolvidas por esses projetos, foram abordadas diversas temáticas referentes aos elementos da cultura afrobrasileira presentes no cotidiano dos educandos. Mesmo que tais elementos perpassassem todas as oficinas realizadas, reservou-se uma oficina específica para destacar os modos de resistência negra. A motivação para esse momento à parte decorreu da necessidade de desconstrução do mito da passividade dos africanos e afrodescendentes perante a escravização que, até hoje, repercute sobre a imagem construída sobre o negro no país. Para Munanga (2006), a ocorrência e permanência desse equívoco histórico é decorrência do desconhecimento sobre os processos de luta e organização dos africanos e seus descendentes durante o período da escravidão. Para o autor, tal enfoque contribui para a falta de pesquisas e materiais que contem a história do negro como sujeito de luta e resistência, além da crença na existência de racismo no Brasil. Portanto, tendo em vista o esforço de recontar “a história do negro brasileiro, destacando-o como sujeito ativo e não como vítima da escravização e do passado escravista” (MUNANGA e GOMES, 2006, p.68), a oficina “Paisagem e modos de resistência negra” buscou abordar as diversas manifestações de resistência à escravização empreendidas por negros e negras no território brasileiro. Para viabilizar o melhor entendimento do tema pelos estudantes da escola
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básica, procuramos dividir a oficina em três momentos, que compreendiam as resistências negras durante o regime escravista, o período pósabolição e, por fim, as resistências contemporâneas. a resistência contra a escravização, empreendida em pleno regime escravista, não pode ser compreendida sem que se leve em consideração pelo menos três fatores:
•
a) o tráfico de escravos africanos fixou, no Brasil, contingente populacional formado por povos de distintas regiões da África, com tradições culturais e políticas bem demarcadas;
•
b) a resistência à escravização em ações variadas que, não necessariamente, utilizavam a violência como recurso;
•
c) a insubordinação do negro foi permanente, o que levou à constituição de inúmeros territórios quilombolas.
Tendo em vista esses elementos, a abordagem da resistência contra a escravização na história do Brasil procurou enfatizar tanto as revoltas contra os senhores de escravos (resposta à violência do ato de escravização), que resultaram em fugas e formação de quilombos, como também as manifestações de identidade cultural presentes nos ritos religiosos (seja de origem africana, seja católica) e as demais formas de sociabilidade estabelecidas pelos negros após a abolição, para se inserir em uma sociedade preconceituosa e excludente. Essas formas de resistência deixaram suas marcas na paisagem e ainda persistem na memória e na história de diferentes sociedades. Seja na forma de patrimônio material (como as igrejas dedicadas ao culto de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, os terreiros religiosos, os territórios identificados como remanescentes de quilombos), seja na forma de patrimônio imaterial (as danças, a capoeira, o congado, os
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batuques, a culinária etc.), tais manifestações estão ainda muito presentes na paisagem de Viçosa (MG). Com o objetivo de abordar as formas de resistência negra no período posterior à abolição da escravização no Brasil, com destaque para o que realmente significou a Lei Áurea de 13 de maio de 1888 e seus reflexos para a população brasileira, foram trabalhados os movimentos de migração intra e inter-regional das populações no Brasil e a sua relação com a sensação de liberdade de circulação, tendo em vista o imaginário de conquista de uma “vida melhor” após a libertação oficial dos escravos no Brasil. Destacou-se o impedimento de acesso a terra, a falta de moradias e o surgimento das ocupações urbanas que viriam a ser denominadas de favelas, demonstrando que à população pobre e negra, que aos poucos ia sendo “liberta” do trabalho escravo, não foi garantida a melhoria de vida, devido entre outros fatores, à falta de trabalho e a ao preconceito que ainda prevalecia na sociedade. O fato de serem libertados por força da lei não garantia aos negros os mesmos direitos de fato e todas as oportunidades dadas aos brancos em nosso país, sobretudo, às camadas mais ricas da população. Por isso, além da libertação oficial, instituída na lei, os negros brasileiros após a abolição tiveram que implementar um longo e árduo processo de construção de igualdade e de acesso aos diversos setores sociais. (MUNANGA,2006, p.107).
Destacamos nessa oficina que apesar de submetidos às precárias condições de trabalho, à carga horária excessiva, associados a baixos salários e outros abusos, a busca por alternativas para sobreviver a este quadro hostil compreendeu o estabelecimento de redes de solidariedade entre as famílias. Surgiam, também, neste contexto de exclusão, diversas manifestações culturais que, além de propiciar a diversão desses grupos e aliviar o
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sofrimento social, constituíram-se como símbolos de luta e resistência negra contra o preconceito e a falta de oportunidades. Um grande exemplo utilizado foi o samba, que no início do século XX, “já não era, portanto, mera expressão musical de um grupo social marginalizado, mas um instrumento efetivo de luta para afirmação da etnia negra no quadro da vida urbana brasileira” (SODRÉ, 1998, p.16). Para demonstrar que a paisagem expressa formas de resistência engendradas no cotidiano procuramos apresentar as diversas manifestações da resistência negra na cidade de Viçosa/MG, na contemporaneidade, por meio de um trabalho de campo. O trabalho de campo tem se constituído, na história da Ciência Geográfica, como importante ferramenta na investigação dos fenômenos espaciais. No ensino da disciplina, também é utilizado como instrumento no processo de ensino e aprendizagem, a partir da leitura da paisagem. A atividade consiste em três momentos: a preparação, a realização e o retorno. Enfatizamos os lugares e as paisagens que existem e são importantes marcas negras no espaço na cidade. A principal característica do trabalho de campo é a leitura e interpretação da paisagem, categoria essa compreendida como a dimensão do espaço em que podemos identificar as marcas impressas pelas ações de ordem natural e social. Por isso, buscamos a partir de um enfoque da Geografia Histórica, demonstrar como a cidade nasceu e de que maneira os negros se inseriram nessa sociedade. Destacamos nas atividades propostas em aula que, a despeito de várias tentativas de silenciamento e apagamento dessas marcas ao longo do tempo, as marcas da cultura negra persistem na paisagem de Viçosa. O mapa que segue foi utilizado no roteiro desenvolvido junto aos estudantes.
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1º Ponto: Bairro São José (Laranjal)
Os primeiros moradores do bairro vieram de outros municípios de Minas (43,9%) ou de outro estado (29,3%), ou seja, quase 70% são migrantes. A vinda para o bairro ocorreu no momento em que a Universidade Federal de Viçosa se federalizou e teve como motivo as dificuldades de continuar vivendo com dignidade na roça e nos sítios. Um dado importante é que foi a Associação de Moradores, criada em 1989, que contribuiu para a melhorias que ocorreram no bairro e para a organização de festejos no mesmo. No Laranjal e no bairro Carlos Dias, estão as raízes do samba em Viçosa. 2º Ponto: Capela de Nossa Senhora dos Passos
Primeira ermida construída no que viria a ser a vila de Santa Rita do Turvo, em 1800. A edificação foi tombada devido ao valor histórico agregado, por ser marco da fundação da cidade de Viçosa. A Escola de Samba Unidos dos Passos, que conta com moradores do bairro Carlos Dias (Rebenta Rabicho), está nas proximidades da rua dos Passos. 3º Ponto: Bairro Buieié
O bairro rural Buieiê é reconhecido como comunidade remanscente de quilombo, pela Fundação Palmares. Segundo Seu João, um dos moradores mais antigos do bairro, as terras eram parte de um antigo engenho de açúcar, que pertencia à Sra. Nhanhá do Paraíso, que vendeu suas terras aos antigos escravos, no final da escravização oficial. Outra versão atesta que essas terras foram doadas. Então, os moradores e seus descendentes fixaram-se aí e dividiram esse espaço desde o final do século XIX.
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Acima, Comunidade do Buieiê, 2012 (Foto: Janete Regina de Oliveira) Abaixo, Estudantes no bairro Buieiê, 2013. (Foto: Arquivo PIBEX/PROEXT “Grafia negras na Zona da Mata Mineira).
4º Ponto: Avenida Castelo Branco
Construída no contexto da modernização da agricultura brasileira e da expansão da federalização da UFV, que se torna referência científica na pesquisa agropecuária nacional e internacional. Essa avenida teve a importante participação da mão de obra negra da região. 5º Ponto: Praça do Rosário
Antigo espaço dos festejos da cultura negra de Viçosa (SOUSA, 2008), ali, havia a igreja Nossa Senhora do Rosário, onde era realizada a Festa do Congado. Em 1967, a igreja foi demolida e os festejos passaram a ocorrer
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no distrito de São José do Triunfo, perdendo a centralidade espacial e ocupando espaço periférico no município. Contudo, todo mês de outubro, essa centralidade desloca-se para a periferia por causa da celebração do Congado.
Acima: Igreja do Rosário antes da demolição (Foto: Tony Melo Produções). Abaixo, Praça do Rosário, 2013 (Foto: Janete Regina de Oliveira).
6º Ponto: UFV
Importante instituição de ensino, pesquisa e extensão na Zona da Mata Mineira, cujos braços negros ajudaram a construir. Onde eles estão agora?
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Ao retornar à escola, os estudantes, a partir das anotações, construíram, em grupos, a representação dos espaços de resistência negra no município de Viçosa, em mapa que foi disponibilizado. Durante a preparação, em sala de aula, foram questionados sobre o que sabiam dos pontos a serem visitados. Todas as providências foram tomadas, pela escola, com a autorização dos pais e um profissional da escola para acompanhar as turmas. No retorno, de posse da ficha que foi preenchida durante o trajeto, os estudantes foram reunidos em grupo, para que pudessem sintetizar, através do mapeamento e produção de cartazes, onde identificassem as marcas negras, no município. Alguns Cartazes produzidos junto aos estudantes
Foto: Arquivo PIBEX,PROEXT- Grafias Negras na Zona da Mata Mineira, 2013.
Além desses, visitados, em sala de aula foram trabalhados a Rua Nova (em processo de reconhecimento como terra de pretos,) e o distrito de São José do Triunfo (Fundão), onde ocorre a Festa do Congado, todo mês de outubro.
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Considerações finais
Procurou-se demonstrar, aqui, as possibilidades de trabalho na educação básica, mais especificamente a contribuição do Ensino de Geografia para a abordagem das relações étnico-raciais. As atividades realizadas visaram demonstrar a importância da contribuição negra para a configuração dos espaços matense e viçosense, identificados a partir de pesquisas e investigação junto à própria comunidade e as fontes bibliográficas e documentais. Buscou-se abordar a temática a partir de dois referenciais: o primeiro, em compreender a escola como lugar de convergência de culturas, e o segundo considerando os conhecimentos cotidianos no processo de aprendizagem em Geografia. Acreditamos que os passos construídos e que viabilizaram a execução desses projetos foram de suma importância para a formação dos alunos e professores envolvidos, tanto da universidade como da escola básica. No âmbito da educação para as relações étnico-raciais, a Geografia, como disciplina que busca compreender a espacialidade dos fenômenos, tem muito a contribuir. Através dela, a leitura da paisagem possibilita a visibilidade das marcas negras registradas em diferentes temporalidades, sendo na maioria das vezes apagadas pela história oficial e, por isso, encontram-se nos subterrâneos da memória, devendo ser trazidos à superfície, de modo a permitir a construção de outros discursos, partir dos povos subalternizados. Referências BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – geografia. Brasília: MEC/SEF, 1998 A. ________. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Temas Transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998 B.
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BRASIL, Lei 10639, de 09 de janeiro de 2003, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 09 de janeiro de 2003. BRASIL. Lei 11.645-08, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF. 10 de março. 2008. BRASIL. Ministério Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de historia e cultura afro-brasileira e africana. Governo Federal, 2004. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME,
2017.
Disponível
em:
CANDAU, V. M. F. Diferenças culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, v.11, n.2, p. 240-255, jul/dez. 2011. ISSN 1645-1384 (online)< www.curriculosemfronteiras.org240> Acesso em: 10 fev. 2012. CAVALCANTI, Lana. de S. Geografia e práticas de ensino. Goiânia: Alternativa, 2002. CORRÊA, Roberto. L.; ROSENDAHL, Z. (Orgs). Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. GOMES, Nilma. L. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 23, mai./ago. 2003. GONÇALVES, L. A. de O; SILVA, P. B. G. e. O Jogo das Diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. 4.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
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GONÇALVES, Luciane R. D. Educação das Relações Étnico-Raciais: o desafio da formação docente. 29ª Reunião da ANPED, 2006. http://www.anped.org.br/reunioes/ 29ra/trabalhos/trabalho/GT21-2372--Int.pdf. (Acesso em 09/11/2009). MAZZON, J. A. (Coord.). Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas-USP e INEP, 2009. MUNANGA, Kabenguele.; GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda, 2006. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. SANTOS, R. E. dos. Diversidade, espaço e relações étnico-raciais: o negro na Geografia do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 3.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. SOUSA, P. P. A. de. As Geo-Grafias da Memória: gênero e negritude na constituição do lugar festivo do Congado de São José do Triunfo, Viçosa-MG. Monografia (Graduação). Viçosa: Universidade Federal, Departamento de Geografia, 2008.
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Anexo 1 Trabalho de Campo Grafias Negras da Zona da Mata Mineira Ficha de observação da paisagem 1º PONTO: BAIRRO SÃO JOSÉ (LARANJAL) a) Você sabe quando nasceu o Bairro São José (Laranjal)? (
) entre 1950 e 1960
( )entre 1970 e 1980
(
) depois de 1980
b) A Escola Nossa Senhora de Fátima é a primeira escola construída no Bairro? (
) sim
(
) não
c) Este bairro se encontra na área central da cidade ou em área periférica? _________________________________________________________________________ 2º PONTO: IGREJA DOS PASSOS
•
Você acha que a Igreja dos Passos é uma área de ocupação recente na cidade de Viçosa
ou uma das primeiras a serem ocupadas? (
) área de ocupação recente
(
)uma das primeiras áreas a serem ocupadas
3º PONTO: BUIEIÉ a) Esta comunidade onde estamos pertence à Zona Rural ou Urbana do município de Viçosa/MG? (
) Zona Rural
(
) Zona Urbana
b) O que chama atenção na paisagem do Buieié? ( (
) iluminação pública
(
) casas próximas umas das outras
) edifícios (
(
) ruas estreitas e sem asfalto
) presença de áreas verdes
(
)
plantação de café, eucaliptos, etc. c) Esta comunidade encontra-se afastada do centro da cidade? (
)sim
(
) não
d) Por que você acha que a comunidade ainda se encontra vivendo neste local (afastado do centro da cidade)? (
) porque os governos não investiam e não investem no local
(
) porque os moradores preferem ficar isolados sem qualquer assistência do governo
(
) porque os moradores na tem condições para se mudarem
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(
) porque muitos moradores, apesar das dificuldades encontradas no lugar, gostam de
morar no Buieié. (
) porque ainda existe preconceito em relação a áreas remanescentes de quilombolas
4º PONTO: CASTELO BRANCO 1- A Rodovia Castelo Branco foi construída em que período? (
)entre 1950 e 1960
(
) depois de 1980
(
)entre 1960 e 1970
(
) entre 1970 e 1980
5º PONTO: PRAÇA DO ROSÁRIO 1- Todos os prédios (casas, construções, edifícios) na Praça do Rosário são recentes? (
) sim (
) não
2- Quem você acha que morava e ocupava a área próxima à Praça do Rosário o no passado? (
) ricos
(
) pobres
(
) negros
(
) terreiro de umbanda e candomblé
(
) brancos
(
) igreja católica
3- E hoje, você acha que transformou muito o perfil de quem ocupa a área próxima à Praça do Rosário? (
) sim
(
) não
6º PONTO: UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA A UFV localiza-se na área central da cidade ou na periferia?______________________ Ao caminhar pela UFV vemos cinco lagoas, mas nenhum rio. Você imagina o que aconteceu com o rio? (
) nunca existiu rio
(
) foi canalizado
(
) secou
(
) foi aterrado
O que as Quatro Pilastras na entrada da UFV representam para você? (
) separação entre cidade e universidade
(
) pertencimento a cidade
(
) Marco histórico
(
) propriedade coletiva e pública
(
) propriedade privada
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Sobre saberes e fazeres: caminhos para a abordagem do dia 13 de maio em sala de aula Luana Tolentino 1 Rogéria C. Alves 2 Introdução E quando nós falamos temos medo que nossas palavras nunca serão ouvidas nem bem-vindas mas quando estamos em silêncio nós ainda temos medo então é melhor falar tendo em mente que não éramos supostas sobreviver Uma litania para sobrevivência Audre Lorde
Em 13 de abril de 2019 o jornal O Globo noticiou em suas páginas mais um caso de racismo no ambiente escolar. Na coluna do jornalista Ancelmo Góis, foi publicada uma carta assinada por Renata e Elísio, que, diante da violência racial sofrida pela filha de sete anos, não viram outra alternativa a não ser tirá-la da Escola Dinâmica do Ensino Moderno (Edem), instituição da rede privada localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro. No texto, lia-se: Todos os dias nas últimas semanas nossa filha tem sido agredida não apenas verbalmente, chegando a ocorrer episódios de violência física dentro do ambiente escolar. Novamente tive que ensinar a minha filha, agora de 7 anos, que 1
SANTOS, L. D. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES. Email: [emailprotected] 2
Doutora em História Social. Professora Efetiva da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (FaE/UEMG). Email: [emailprotected]
Luana Tolentino; Rogéria C. Alves | 193
racismo é crime, e que é preciso berrar quando ele nos atinge. E ela procurou ajuda! Sem solução efetiva. Mesmo com nosso esforço o racismo institucional venceu! Nossa menina não quer mais pisar na escola, está arredia, chorosa, confusa, agressiva, ferida...(...). Depois de tudo isso nós não acreditamos mais na capacidade de vocês de colaborarem na formação de nossa menina. Por isso estamos tirando nossa filha dessa escola. Esperamos de verdade que a passagem das nossas meninas pela Edem deixe alguma colaboração, ao menos uma reflexão. Em nossa pequena com certeza ficarão marcas, por vezes dolorosas, mas que vamos trabalhar dia a dia para transformar em aprendizado, e força... Sem ódio (O Globo, 13 de abril de 2019).
O drama vivido pela família carioca remonta os editoriais e artigos veiculados a partir de meados do século XIX nos órgãos da Imprensa Negra, conjunto de jornais empenhados na divulgação de questões pertinentes aos afro-brasileiros, como cultura, moradia, saúde, emprego, trabalho e, sobretudo, educação. Encontramos nas páginas de periódicos como O Homem de Cor; do Rio de Janeiro (1833/RJ), O Exemplo; de Porto Alegre (1892/RS); A Rua e A Voz da Raça, ambos publicados na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, textos que retratavam as dificuldades encontradas pela comunidade negra no acesso aos bancos escolares. Alguns exigiam a abertura de escolas e de cursos noturnos, outros objetivavam incutir entre os negros e negras a importância do saber enquanto mecanismo de afirmação e de exercício da cidadania. Encontramos ainda depoimentos marcados pela dor e pelo preconceito racial. O artigo assinado por Haroldo Costa, publicado na edição de 1948 do jornal Quilombo, órgão de divulgação do Teatro Experimental do Negro (TEN), evidencia que há muito a trajetória dos educandos afro-brasileiros tem sido perpassada por atitudes violentas e práticas discriminatórias:
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Nos dias de hoje a pressão contra a educação do negro afrouxou consideravelmente, mas, convenhamos que ainda se acha muito longe do ideal. Quando o diretor de um estabelecimento de ensino não pode proibir a entrada de um aluno negro no corpo discente do seu educandário, e a veia de seu preconceito entra em efervescência, ele move-lhe uma perseguição durante o decorrer do curso, promove o seu alijamento psicológico, dificulta-lhe o que houver de mais banal, enfim, tudo faz crer que há uma campanha subterrânea e organizada visando anular as aspirações do negro que deseja estudar.Por tudo isso, para muitos constitui surpresa e incredulidade quando um negro diz ser universitário ou mesmo estudante secundário (COSTA, 1948, p. 4).
“Relatos-denúncias” (GONZALEZ, 2018) como o exposto acima tiveram valor inenarrável na formulação da plataforma de lutas do Movimento Negro Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, nome mais tarde reduzido para MNU), fundado na cidade de São Paulo, em 7 de julho de 1979. O Movimento Negro elegeu a educação como uma de suas principais bandeiras. Por parte dos militantes havia o entendimento de que o acesso aos espaços de educação formal era uma medida urgente e necessária para o a alteração do quadro de pobreza e exclusão na qual se encontrava a maioria da comunidade negra. As práticas pedagógicas e de militância elaboradas pelo Movimento Negro ao longo de três décadas foram fundamentais para o processo de reconhecimento das desigualdades raciais por parte do Estado e também para a promoção de políticas públicas de Ação Afirmativa implementadas no Brasil, principalmente entre os anos de 2003 a 2016. As ações de Grupos, Associações e Entidades de combate ao racismo têm exercido papel central não apenas no âmbito da denúncia das mazelas sociais que afligem a população negra, mas também sobre o poder público, ao reivindicar e exigir uma legislação comprometida com o fim das desigualdades que impedem a construção de uma democracia plena.
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Ao Movimento Negro podemos creditar o protagonismo no processo de elaboração e implementação de Programas, Projetos e Secretarias de promoção da justiça racial no Brasil, sobretudo a partir do início dos anos 2000. Desse conjunto de medidas, destacamos a sanção do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/10), a criação da Secretaria de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR), como também a Lei n. 12.711/12, conhecida como Lei de Cotas. No presente trabalho nos ateremos à discussão da Lei n. 10.639/03 (alterada pela Lei n. 11.645/08) e de suas implicações no enfrentamento das práticas discriminatórias ainda presentes no contexto escolar. Ao ser sancionada em janeiro de 2003, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei n. 9.394/96), tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em instituições públicas e privadas de ensino. A respeito do protagonismo do Movimento Negro no processo de promoção da equidade racial no Brasil, Nilma Lino Gomes escreveu: Uma coisa é certa: se não fosse a luta do Movimento Negro nas suas mais diversas formas de expressão e de organização (...) muito do que o Brasil sabe atualmente sobre a questão racial e africana, não teria acontecido. E muito do que hoje se produz sobre a temática racial e africana, em uma perspectiva crítica e emancipatória não teria sido construído. E nem as políticas de promoção da igualdade racial teriam sido construídas e implementadas. (...) A obrigatoriedade do estudo da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares de educação básica não teriam se transformado em realidade, ajudando a todos nós, brasileiras e brasileiros, de todo e qualquer grupo étnico-racial a superar a nossa ignorância sobre o racismo e seus efeitos nefastos, como também a reconhecer o protagonismo das negras e dos negros, que representam 53% da população que vive e constrói o nosso país (GOMES, 2017, p. 18-19).
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Passados 16 anos da promulgação da referida Lei, podemos afirmar que são inegáveis os avanços que ela tem trazido no que diz respeito ao combate ao preconceito e à discriminação racial nos locais de ensino. Desde 2003, observamos um maior interesse de pesquisadores e pesquisadoras pelo campo da Educação das Relações Étnico-raciais, o que confluiu na abertura de cursos de pós-graduação Latu Sensu e Stricto Sensu dedicados a essa temática. Nesse período, percebemos também o crescimento de encontros, congressos, seminários e colóquios focados no debate em torno do racismo e de suas confluências na educação. Percebemos ainda mudanças no mercado editorial. No que tange à produção de materiais didáticos e paradidáticos é visível que estes têm passado por um contínuo processo de revisão, de modo a atender e a ressaltar a variedade de cores, culturas e povos existentes no país. Nos dizeres de Patrícia de Freitas: De modo geral, ocorreram avanços significativos na qualidade, quantidade e apresentação de conteúdos relacionados à história da África e Afro-brasileira. Aos poucos, ocorre uma revisão de marcos eurocêntricos, de abordagens pejorativas, visões preconceituosas e tratamentos estereotipados. De perspectivas simplificadoras que apresentam grupos historicamente excluídos como vitimas da história ou ainda como entidades genéricas, cujas particularidades de origem, de língua, de religiosidade, dentre outras não foram reconhecidas (FREITAS, 2014, p. 391).
Em meio a essa série de avanços, é importante ressaltar que ainda são muitos os entraves para a efetivação da Lei 10.639/03. O antropólogo Kabengele Munanga é taxativo ao afirmar que “qualquer proposta de mudança em benefício dos excluídos jamais receberia um apoio unânime, sobretudo quando se trata de um país racista” (MUNANGA, 2001, p. 32). É sabido que desde o advento da colonização os negros que aqui chegaram
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têm a vida permeada pelo epistemicídio (CARNEIRO, 2005, p. 97), que consiste na desumanização e desvalorização dos saberes elaborados pelos filhos e filhas da diáspora africana. Nesse sentido, o cumprimento das diretrizes impostas pela Lei acima citada esbarra nas concepções equivocadas que professores, gestores e demais membros da comunidade escolar carregam em relação aos sujeitos negros e, consequentemente, às suas trajetórias individuais e coletivas. Ao processo de inferiorização dos afrodescendentes e de suas contribuições para a formação do país, soma-se a crença de que vivemos em uma democracia racial, na qual não há conflitos ou abismos provocados pela distância que separa brancos e negros no que tange o acesso aos bens públicos e às oportunidades. Nesse sentido, práticas de ensino imbuídas na desconstrução de estereótipos em relação à comunidade negra, como também na descolonização dos currículos cedem lugar a discursos como “somos todos iguais” e também ao silêncio. Desde os anos de 1980, o professor e pesquisador Luiz Alberto Oliveira Gonçalves (1985) tem chamado a atenção para o fato de o silêncio ser um poderoso instrumento pedagógico de manutenção das práticas racistas existentes no universo educacional. Ao escolher não tratar dessas questões, a escola contribui para a permanência da injustiça racial e cognitiva (SANTOS, 2009, p. 32), negando a alunos negros e também brancos o conhecimento da História e da Cultura produzida pelos povos subjugados pelos empreendimentos coloniais. Sobre o silêncio “como um ritual pedagógico a favor da discriminação racial” (GONÇALVES, 1985), aponta Eliane Cavalleiro: Na educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. O silêncio sobre o racismo, o preconceito e a discriminação racial nas diversas instituições educacionais contribui para que as diferenças de fenótipo
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entre negros e brancos sejam entendidas como desigualdades naturais. Mais do que isso, reproduzem ou constroem os negros como sinônimos de seres inferiores. O silêncio escolar sobre o racismo cotidiano não só impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes nas escolas brasileiras, tanto de alunos negros quanto de brancos, como também nos embrutece ao longo de nossas vidas, impedindo-nos de sermos seres realmente livres “para ser o que for e ser tudo” – livres dos preconceitos, dos estereótipos, dos estigmas, entre outros males (CAVALLEIRO, 2005, p. 11-12).
Entendemos as lacunas na formação dos professores para o trato da diversidade étnico-racial como um impeditivo para “o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes nas escolas brasileiras”, conforme apontado no excerto anterior. Por meio de suas pesquisas, intelectuais como Wilma de Nazaré Baia Coelho (2005) e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2007) enfatizam que o baixo número de atividades e disciplinas voltadas para o cumprimento das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais (2004), que determina a capacitação docente como um dos principais requisitos para a efetivação da Lei 10.639/03, tem favorecido a permanência dos processos contínuos de opressão e de silenciamento experienciados pelo alunato negro. Em nossas andanças por eventos acadêmicos, nas oficinas de formação de professores por nós ministradas, em salas de aulas da educação básica, nos encontros promovidos pelos movimentos sociais, como também nos cursos de graduação e de pós-graduação pelos quais temos transitado, as perguntas “como implementar a Lei 10.639/03 em sala de aula?” e “como incluir a Lei 10.639/03 no currículo de História?” sempre ecoam nos nossos ouvidos. De maneira a contribuir ainda que timidamente para a capacitação de docentes e de futuros docentes, apresentamos algumas reflexões e sugestões de práticas pedagógicas antirracistas. Tomando de empréstimo o pensamento da educadora afro-americana bell
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hooks (2013),temos em mente que cada turma e cada escola são únicas. Contudo, elaboramos essas reflexões na esperança de que elas possam nortear ou impulsionar a construção de práticas pedagógicas comprometidas com uma educação plural e emancipadora. Ressaltamos que as sugestões apresentadas a seguir foram elaboradas em diálogo com referenciais teóricos alinhados à construção de uma ecologia de saberes (SANTOS, 2009), como também a partir de nossa experiência enquanto professoras negras. Reconhecemos também que tal construção pedagógica desafia a ordem colonial sobre a qual o conhecimento acadêmico está assentado: uma estrutura de validação de conhecimentos eurocêntricos, que define a erudição a partir de relações desiguais de poder e raça, conferindo à branquitude uma "autoridade inquestionável" (KILOMBA, 2019, p. 53). Defende-se, desta forma, que as reflexões que por ora apresentamos são resultantes de nossas experiências cotidianas, perpassadas pelo racismo, que confere a pessoas negras experiências, questionamentos, interpretações e avaliações diferenciadas da realidade vivida nas escolas e em outros espaços educativos. Partindo das premissas defendidas por Patricia Hill Collins (2019, p. 401), somos guiadas pela epistemologia feminista negra, que tem como um dos pressupostos o compromisso com os povos subjugados. Desenvolvimento
Descolonizando o currículo: novos olhares sobre a abolição da escravatura no Brasil a) O cenário:
É treze de maio. A professora está empolgada, pois preparou uma aula sobre a importância da data. Ela entra na sala e diz: – Gente, hoje nós vamos tratar de uma data importantíssima para o povo negro.
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Os estudantes já se entreolham e alguns começam a rir. A professora não nota a ironia daqueles risos e dada à empolgação, já pede logo que os estudantes abram os livros e observem o desenho da Princesa Isabel. Um aluno negro, em tom jocoso, dispara: – Mas cadê os pretos? A gente não ia falar deles?
A professora o repreende e pede silêncio. Empolgada, continua a falar que a Princesa Isabel libertou o povo negro e que por isso é tão importante falar sobre ela, nesta data. No livro didático, estão as representações visuais tão reconhecidas dos escravizados3 negros: homens e mulheres, muitas vezes seminus, sendo castigados fisicamente e sempre cabisbaixos. Sem a professora notar, há uma aluna negra no canto da sala que está se sentindo incomodada com aquela situação. Cabisbaixa, a estudante pensa consigo mesma: – Eu só quero que essa aula acabe, antes que digam que a escrava do livro didático se parece com minha mãe... b) Descolonizar o pensamento
A proposta desta reflexão contempla uma perspectiva da "descolonização" do pensamento e coaduna-se com a ideia de Achille Mbembe (2019, p. 57-58), de que o significado da descolonização está para além de uma simples transferência de poder da metrópole para as antigas posses coloniais, no momento da independência. Mbembe argumenta que as estruturas da colonização precisam ser desmanteladas, com a instituição de novas relações entre o sujeito e o mundo. Acredita-se, desta forma, que descolonizar o pensamento relaciona-se com as mudanças sobre as formas
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Mais adiante, trataremos da diferenciação entre os termos escravos e escravizados.
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de compreensão e visão de mundo que os sujeitos, ex-colonizados, devem estabelecer a partir da independência. Isso implica a valorização dos próprios saberes, vozes e formas, em detrimento de uma exclusiva valorização de saberes, vozes e formas de origem europeia. E é, neste sentido, uma quebra de paradigma. O relato acima é inspirado nas memórias de algumas educadoras negras que narraram o constrangimento vivenciado durante as aulas no ensino fundamental, quando eram tratados temas ligados à escravidão no Brasil.4 Mas como o educador deve agir diante de situações como estas? Como lidar com um estudante que parece naturalizar todas as situações que envolvem a questão racial e sempre responde de forma jocosa? O que esse comportamento revela? Como fugir das representações tendenciosas relativas ao negro que aparecem nos materiais didáticos? Como lidar com a situação de vergonha e constrangimento na qual alguns estudantes negros se encontram, ao debater temas pertinentes à negritude? A educadora Diva Guimarães, que emocionou os participantes da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP) com seu relato de vida, em 2017, disse que durante sua trajetória escolar vivenciou várias situações semelhantes à citada. Em entrevista à revista Nova Escola, afirmou: Nas aulas, aprendi o que estava nos livros. Não tinha nada de bom que a gente [os negros] fazia. Você não se via nas páginas escolares como negro. Você estudava a história dos Estados Unidos – às vezes a gente até tinha que decorar palavras em inglês –, estudava sobre a Europa, mas nada sobre a África. Tudo o que diziam era que a gente veio de lá escravizado para trabalhar no Brasil. Eu passava mal. Ficava revoltada quando falavam da escravidão porque as pessoas começavam a olhar para mim porque eu era a única negra.5
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Agradeço às educadoras e pesquisadoras: Andréia Martins da Cunha, Elzelina Dóris dos Santos e Iara Pires Viana (todas servidoras da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais - SEE/MG) pelos relatos. 5
Entrevista disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/5325/na-escola-seguimos-escravos-dizprofessoraque-emocionou-a-flip . Acesso em 0/10/2019.
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A complexidade do pequeno relato apresentado por nós e pela professora Diva envolve o racismo em diferentes níveis e revela comportamentos diferenciados diante de uma temática comum: a história dos negros no Brasil. É importante lembrar que a efetividade da Lei nº 10.639 — que prevê a obrigatoriedade do ensino de histórias e culturas africanas e afro-brasileiras no âmbito da Educação Básica no Brasil, desde 2003 — não reside em datas pontuais no calendário escolar. Antes, se faz cotidiana e deve ser trabalhada por todos educadores. Um ponto fulcral deste debate é tornar evidente que a obrigatoriedade da referida lei, que modificou a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação— Lei de nº 9.394/96, em seus artigos 26 e 79-B —, permanece, mesmo frente a tantas mudanças no cenário educacional brasileiro. Educadores mais afoitos questionarão: “Mas então não devo ‘comemorar’ o 13 de maio? A Princesa Isabel deve ser esquecida?” Não incorramos em fatais erros históricos, tão pouco em radicalismos austeros: todo evento, data e seus sujeitos possuem uma inestimável importância histórica. Mas sejamos enfáticos: todos. Isso significa dizer que ao mencionarmos um reconhecido fato histórico, devemos “dar voz” a todos envolvidos naquela situação, de maneira igualitária. Contudo, como todos sabemos, as Ciências Humanas são feitas por sujeitos humanos que possuem desejos, inclinações, pensamentos e posturas próprias.6 Desta forma, todo fato histórico, quando relatado, está baseado num ponto de vista que, por vezes, pode privilegiar alguns em detrimento de outros. A função do educador, enquanto um formador de opiniões e um formador de cidadãos é alertar para tais construções. É importante reconhecer, neste
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Para saber mais sobre a questão da objetividade e da subjetividade na História, leia: RICOEUR, 1968.
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sentido, que a escola é um campo de poder7 e que as colocações de um educador impactam a vida de seus estudantes de diferentes formas. Um olhar mais atento sobre a narrativa inicial deste tópico revela o racismo enquanto processo histórico, sendo naturalizado nas atitudes e pensamentos dos personagens citados. Silvio de Almeida (2018, p. 42) pontua que o racismo enquanto processo histórico liga-se às peculiaridades de cada formação social, manifestando-se de forma circunstancial e específica, e em conexão com as transformações sociais. Neste sentido, é importante recordar que os diferentes processos de formação nacional dos Estados contemporâneos tiveram como base projetos políticos, nos quais as classificações raciais tiveram papel importante para definir hierarquias sociais, legitimar a condução do poder estatal e as estratégias econômicas. No relato apresentado acima, professora e estudantes assumem posturas diferentes em relação à temática das relações étnico-raciais, mas todos incorrem em erros e adotam posições negativas com relação à representatividade da população negra. A professora enfatiza a atuação da Princesa Isabel, reafirmando a ideia de uma redentora para a escravidão brasileira, quando na verdade sabe-se da atuação de muitos sujeitos históricos, incluindo-se negros, na luta abolicionista no Brasil do século XIX. Walter Rodney (1975, p. 357), ao analisar a educação colonial ministrada aos povos africanos pelos europeus
colonizadores,
enfatiza
que,
muitas
vezes,
aplicava-se
deliberadamente o currículo europeu sem nenhuma referência às condições africanas, com a intenção consciente de confundir e mistificar. Neste sentido, as figuras reais europeias eram utilizadas nas escolas primárias com intuito de propagar um modelo europeu e ideal de civilização. Embora a análise construída por Rodney refira-se a outro contexto colonial, ela
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Para saber mais, leia: CACIANO; SILVA, 2012.
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encontra ecos na forma como a figura da Princesa Isabel é supervalorizada na história da abolição brasileira. Uma proposta de abordagem "descolonizadora" acerca da data poderia ser realizada pelos educadores levando-se em conta, primeiramente, o contexto sociopolítico ao qual o Brasil estava submetido e que contribuiu para o fim da escravidão, em 1888. Ao tratar da abolição da escravidão, o educador deve ter o cuidado de demonstrar todos os fatos que contribuíram para a proclamação da Lei Áurea. De antemão, é preciso recordar que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão — o que revela o apego daquela sociedade a esta forma de trabalho cruel, base do projeto político e social de construção nacional, que já não era permitida em várias partes do mundo. É importante lembrar que a escravidão foi um regime de trabalho que excluía a cidadania e a dignidade dos escravizados. Isso significava que a população negra, de origem africana, trazida para o Brasil forçadamente como mão de obra, não era detentora de direitos. Estes homens e mulheres podiam ser comercializados; enfrentavam obstáculos para ter acesso a educação formal; não tinham controle sobre o próprio corpo ou destino, sendo considerados por muitos como animais, desprovidos de alma e por isso passíveis de atrocidades. Além disto, por não haver informações corretas sobre as culturas de origem destes homens e mulheres de origem africana, entendiam-se como demoníacas e anormais todas as suas manifestações culturais (língua, religião e costumes). É importante lembrar que todo esse panorama foi fruto de construções ideológicas e dominadoras que tinham por objetivo fundamentar e justificar a escravização do povo negro. Tais posturas revelam a posição de dominação dos colonizadores europeus sobre os povos africanos e do Novo Mundo. Em outras palavras, é preciso lembrar que essas ideias distorcidas e errôneas sobre a população negra eram convenientes à escravização e foram defendidas tão forte e cegamente em função de ideais
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coloniais, que se perpetuaram ao longo do tempo e em diferentes lugares. Prova disto é a persistência do racismo em nosso meio, na atualidade. Afinal, o que leva uma pessoa a desprezar a outra, pela cor de sua pele? Há toda uma construção social e cultural, de cunho negativo, que embasa tal postura. Neste sentido é importante lembrar que a escravidão e o tráfico de escravizados são considerados internacionalmente, crimes contra a humanidade.8 Libertos da situação de cativeiro, quando da promulgação da “Lei Áurea”, os escravizados continuaram excluídos e despossuídos naquela sociedade. Todo período que antecede à promulgação da referida lei se deu, paralelamente, às mudanças na ordem econômica e política, que colocavam obstáculos à existência de um país escravagista no cenário mundial. Muitos abolicionistas, que demonstravam grande indignação pelas condições de cativeiros dos negros, não foram capazes de pensá-los como indivíduos, que deveriam ser inseridos na sociedade pós-abolição e que havia uma parcela de culpa daquela sociedade e do Estado naquela situação. Assim, supunham que, saindo da condição de escravizado, o negro trabalharia como mão de obra remunerada para seu próprio sustento. Mas grande parte do contingente de cativos libertos vagava desorientada, sem condições para se sustentar, e sem trabalho no campo, que começava então a ser feito pelos imigrantes de origem europeia, especialmente. Lilia Schwarcz (2012, p. 31 e 32) destaca que: [...] o processo de abolição brasileiro carregava consigo algumas singularidades. Em primeiro lugar, a crença enraizada de que o futuro levaria a uma nação branca. Em segundo, o alívio decorrente de uma libertação que se fez sem lutas nem conflitos e sobretudo evitou distinções legais baseadas na raça.
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Para saber mais, busque informações sobre a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_durban.pdf. Acesso em 19/12/2017.
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Ao contrário da imagem dominante em outros países, onde o final da escravidão foi entendido como o resultado de um longo processo de lutas internas, no Brasil a Abolição foi tida formalmente como uma dádiva — no sentido de que teria sido um “presente” da monarquia, e não uma conquista popular.
Os ex-escravizados foram lançados à própria sorte, sem nenhuma política por parte do Estado brasileiro que os amparasse ou que previsse qualquer tipo de reparação. Sem oportunidades, sem dinheiro e ainda preteridos a serem contratados como mão de obra assalariada, já que os imigrantes europeus haviam ocupado este lugar, aos negros ex-escravizados e aos seus descendentes foram relegados, mais uma vez, os nãolugares sociais, as ausências, os barracos construídos nos morros — já que os centros urbanos precisaram ser limpos e organizados. Neste sentido, acredita-se que a representatividade da data deve ser estudada levando-se em considerações todas as ponderações levantadas. Acredita-se que não é adequado falar em "comemorações" no dia 13 de maio, mas, sim, propor reflexões sobre a situação histórica acerca da população negra de nosso país. E sempre propor um paralelo com a atual situação da população negra no Brasil, após mais de 130 anos da abolição. Afinal, quais foram as mudanças significativas para a situação social e econômica da população negra do Brasil? Para se ter uma ideia da situação atual de desigualdade, em diferentes âmbitos, entre a população negra e a população branca no Brasil, basta verificar indicadores nacionais de pesquisas, como a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio). Embora pretos e pardos sejam a maior parcela da população nacional, a PNAD Contínua do 3º trimestre de 2018 registrou desemprego mais alto entre pardos (13,8%) e pretos (14,6%) do que na média da população (11,9%). Os dados da PNAD de 2015 mostram que apesar dos negros e pardos representarem 54% da população na época, a sua participação no grupo dos 10% mais pobres era maior: 75%.
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Já no grupo do 1% mais rico da população, a porcentagem de negros e pardos era de apenas 17,8%. A proposição de debates, levando-se em consideração dados atuais e pesquisas sérias produzidas acerca das disparidades sociais atuais, é uma forma descolonizada de estudar a questão no Brasil e incentivar a luta por políticas públicas que, de fato, promovam a igualdade racial. Com relação ao comportamento dos estudantes mencionados, acredita-se que é preciso construir todo um projeto de valorização em torno da identidade negra, que trabalhe a autoestima desta população. Assim, a questão do respeito ao outro e às diferenças, sejam elas físicas ou de outra ordem, deve ser trabalhada no ambiente escolar fortemente. É importante que educador esteja atento ao comportamento de seus estudantes e disposto a intervir em situações que revelem racismo, preconceito racial ou outra forma de discriminação (ALMEIDA, 2018. p. 25).9 As diferentes reações dos estudantes citados no relato revelam a diversidade de posturas adotadas por vítimas do racismo. A reação jocosa do estudante negro citado pode ser interpretada de formas diferentes. Para Adilson Moreira (2019) tal estratégia de reação se enquadraria na reprodução de uma postura ligada ao racismo recreativo — uma espécie de projeto de dominação social característica da sociedade brasileira, que mascara a hostilidade racial por meio do humor. Entretanto, a reação pode ser lida como um mecanismo de defesa: ao provocar o riso e tratar a questão como uma piada, um discurso informal, o estudante fomenta o estereótipo e a discriminação, por meio de uma dissimulação. E também denuncia a existência destas manifestações na sociedade brasileira (FONSECA, 1994). 9
De acordo com Almeida, racismo “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam”. Já o preconceito é entendido como a construção e definição de conceito sobre determinada pessoa ou grupo, estabelecida por fatores históricos e sociais.
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Já a vergonha e receio da outra estudante podem ser compreendidos como uma reação negativa à sua origem étnica pela situação de racismo estrutural à qual estamos subemtidos. Franz Fanon afirma que é uma consequência do colonialismo a percepção do homem/mulher negro/negra não como um homem ou uma mulher, mas antes como uma homem/mulher negro/negra, pois a sua parcela de humanidade foi roubada a favor de uma suposta "superioridade dos homens/mulheres brancos". Fanon acredita que a libertação do homem negro se dá pela compreensão das relações raciais entre branco/negro e pela desconstrução desse imaginário colonial que não passa de uma ideologia dos “imbecis”. Neste sentido: Os negros são mistificados porque foi elaborada sobre eles uma imagem de subalterno, e os brancos são mistificadores porque, como colonizadores, elaboraram sobre si uma imagem de superioridade em relação ao negro, também mistificada enquanto tal. A alienação encontra-se na crença de que um grupo racializado é superior a outro grupo também racializado. (FANNON, 1983)
Com relação ao material didático e às representações imagéticas deste, o educador também deve estar atento. Caso o material represente, por exemplo, somente os negros em situação de violência ou pobreza, um estereótipo comum em nossa mídia, o educador deve recorrer a outras fontes e levá-las ao conhecimento de seus estudantes. Em análise sobre as representações de negros e brancos em livros didáticos, Paulo Vinicius Baptista da Silva ressaltou que grande parte dos materiais: [...] continua produzindo e veiculando o discurso que universaliza a condição do branco, tratando-o como representante da espécie, naturaliza a dominação branca e estigmatiza o personagem negro, situando-o como out-group, mantendo-o circunscrito a determinadas temáticas e espaços sociais. (SILVA, 2008, p. 199)
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Suely dos Santos Souza (2016, p. 250) pontua que a construção de uma educação contextualizada, baseada na pedagogia crítica, deve se pautar no desenvolvimento de práticas questionadoras, que saibam problematizar as construções imagéticas presentes em muitos materiais didáticos, de modo a combater o racismo, o preconceito e os estereótipos. É importante o professor mencionar que negros e negras ocuparam e ocupam espaços significativos nas artes, ciências, política, entre outros campos importantes, para além do campo artístico e dos esportes — que também são esferas respeitáveis, mas que não devem ser utilizadas como exemplos únicos de espaços sociais de ascensão da população negra. Escravo versus Escravizado: novas epistemologias envolvem a linguagem
Falar sobre a abolição da escravatura leva-nos também a refletir sobre uma recente polêmica em termos historiográficos que envolve a substituição do termo escravo pelo vocábulo escravizado. Um olhar desatento sobre a questão pode levar a conclusões precipitadas e pouco reflexivas: muitos podem argumentar que tal troca não implica grandes mudanças, que ambos os vocábulos são praticamente sinônimos. Para se compreender a verdadeira importância de tal substituição e a necessidade cada vez mais urgente de adotá-la não só no meio acadêmico mas também no âmbito da educação básica, é necessário antes revistar alguns conceitos. Essa substituição deve-se a uma nova perspectiva epistemológica que reconhece as origens e imposições coloniais presente no vocábulo escravo. Neste sentido, defende-se que o termo escravizado deve ser utilizado para fazer referência às populações que foram submetidas ao trabalho forçado, por um determinado período de tempo. Já o uso do vocábulo escravo conduz ao sentido de naturalização e de acomodação psicológica e social frente à escravidão e reforça a noção de cativo — que prevê uma condição de vida atemporal sob a opressão de outrem. Por conseguinte, há pelo menos três
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premissas importantes envolvidas nessa troca de vocábulos: a adoção de um ponto de vista histórico que contempla a "história vista de baixo"; a ampliação do conceito de sujeitos históricos; e a valorização das formas de conhecimento e visão de mundo das populações historicamente colonizadas. A "história vista de baixo" é uma vertente historiográfica ligada à História Social, que preconiza uma ampliação no campo da disciplina História, voltando-se para as trajetórias de homens e mulheres das chamadas classes subalternas — cujas trajetórias de vida foram negligenciadas nas narrativas clássicas dos processos históricos.10 Assim, essa vertente liga-se diretamente à ampliação do conceito de sujeitos históricos, uma vez que a narrativa histórica, nessa perspectiva, não se concentra em grandes nomes ou personalidades, mas passa a considerar como importante e fundamental, as trajetórias de vida de sujeitos "comuns", ligados às camadas populares. No livro "Epistemologias do Sul", Boaventura de Sousa Santos propõe uma reflexão acerca das formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, que foram relegados à subalternidade pelo processo de colonização. A alternativa oferecida pelo sociólogo, na atualidade, para contrabalancear essa disparidade, é a perspectiva da ecologia dos saberes — que propõe um diálogo horizontal entre as formas de conhecimento (SANTOS, 2009, p. 5). A ecologia dos saberes aplica-se ao uso do termo escravizado, na medida em que tal termo objetiva resgatar o contexto e a relação histórico-racial referente ao período escravista, enfatizando a resistência e o protagonismo das populações que foram escravizadas. E, neste sentido, confere destaque e importância a estas populações, que
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Essa vertente historiográfica tem como principais representantes Edward Thompson e Eric Hobsbawm, cujo enfoque na História do Trabalho se ocupa da cultura dos operários, seus costumes, valores, modos de vida e experiências. Para um melhor detalhamento desta perspectiva veja: ALFAGALI, 2018, p. 31 e 32.
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devem também ser vistas/percebidas sob outras perspectivas, especialmente ativas, portadoras de conhecimento e visões de mundo próprias. A adoção do termo escravizado para fazer referências aos povos que foram submetidos, por determinado período de tempo, ao regime de escravidão carrega em si todos esses pressupostos teóricos que explicitamos, revelando-se uma escolha carregada de significados sociais, para a construção de uma visão da História em conformidade com novas epistemologias. Neste sentido, concorda-se com Harkot-de-La-Taille e Santos: “A substituição do vocábulo escravo por escravizado significa a instauração de um novo ponto de vista, uma pequena conquista, porém, com potencialidade para se desdobrar em outras mais significativas” (HARKOT-DE-LA-TAILLE& SANTOS, 2016). Desse modo, os educadores devem estar atentos ao uso do termo escravizado, enfatizando-o em suas aulas e na elaboração de textos, contribuindo deste modo para a construção de educação antirracista também com relação à linguagem. Apontamentos finais
Pesquisas recentes revelam que meninas e meninos negros têm encontrado maior dificuldade no que diz respeito ao êxito escolar (FRAGA, 2019). Dados e estatísticas apontam que entre esse grupo é maior a “evasão”, os índices de repetência, como também a baixa autoestima. Esse cenário, que fere o direito humano à educação, é resultante de uma série de fatores, entre eles a sucessão de práticas discriminatórias que permeiam as escolas e o pouco espaço dado aos conteúdos e saberes produzidos pelos povos africanos e seus descendentes. Nesse sentido, o presente estudo pretendeu sugerir possibilidades para a efetivação da Lei 10.639/03 em sala de aula, de modo a possibilitar um olhar crítico em torno de temas comumente trabalhados no currículo de História, como o dia 13 de maio, data que marca a abolição da escravatura. Percebemos que
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este fato histórico, assim como os termos que o envolvem, quando abordados em sala de aula, muitas vezes perpetuam o olhar colonizador (KILOMBA, 2019), centrando o acontecimento na figura da Princesa Isabel. Desse modo, a partir de uma epistemologia feminista negra, buscamos chamar a atenção quanto à necessidade de se inserir nesse evento a importância de negros e negras escravizadas no processo que culminou no fim dos quase quatro séculos de trabalho compulsório. Ao elaborar esse artigo, carregamos a certeza de que cada sala de aula tem suas particularidades. Desse modo, não temos a pretensão de afirmar que a proposta ora apresentada é a única possível. Contudo, acreditamos que ela é mais uma ferramenta nesse universo por vezes tortuoso. Ao escrever sobre o trato da questão da Educação das Relações Étnico-raciais, almejamos nos juntar àqueles e àquelas que têm em mente a urgência da construção de práticas e discursos comprometidos com o fim da injustiça racial. Juntamo-nos ainda aos que entendem a necessidade da promoção de uma ecologia dos saberes que contemple as individualidades e pluralidades dos estudantes envolvidos no ambiente educacional, tal qual nos ensina o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Ao findar esse artigo, temos a sensação de que esse é só o começo. Sabemos que, mais do que nunca, é preciso aprender, saber, fazer e apontar caminhos. Referências ALFAGALI, Crislayne G. M. Ferreiros e fundidores da Ilamba. Uma história social da fabricação de ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras (Angola, segunda metade do século XVIII). Luanda: Fundação Dr. Agostinho Neto, 2018. ALMEIDA, Silvio. L. de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
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10 Eleições, raça e cidadania: uma proposta de educação para as relações étnico-raciais no ensino de história em Minas Gerais Ana Paula Ribeiro Freitas 1 Educação das relações étnico-raciais e Ensino de História.
As primeiras duas décadas do século XXI foram marcadas pelo recrudescimento das discussões referentes às tensões nas relações étnico-raciais no Brasil. Extrapolando os limites das universidades e as ações do movimento negro, tais debates resultaram na aprovação da Lei n. 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, e do Parecer e Resolução de 2004 que instituiu as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. A aprovação da lei - e suas diretrizes - abriu possibilidades para a construção de uma ruptura epistemológica e cultural, com efeitos na crescente inserção da temática racial nos currículos escolares. Vale ressaltar que a própria lei representa uma conquista histórica do movimento negro que, desde pelo menos os anos 1980, vem lutando por uma efetiva correção das desigualdades históricas na sociedade brasileira. Educar para as relações étnico-raciais significa construir processos educativos que possibilitem a superação de preconceitos entre os distintos grupos étnico-raciais, a partir da valorização das contribuições de afro-
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Doutora em História Social (USP). Técnica em Assuntos Educacionais (DHI-UFV) e Professora Permanente do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania da Universidade Federal de Viçosa. Contato: [emailprotected]
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brasileiros e africanos ao desenvolvimento humano e à construção da sociedade brasileira. (VERRANGIA e SILVA, 2010) Neste sentido, a palavra raça é entendida como uma construção social com pouca ou nenhuma base biológica. Por ser uma construção social, o termo é útil para pensar os lugares ocupados por negros e brancos numa sociedade que tende a discriminar e “tratar desigualmente as diferenças”. (GOMES, 2003) A escola desempenha um papel significativo na produção da memória coletiva, das identidades sociais e da reprodução ou transformação das relações de poder. É, portanto, um dos espaços em que as representações negativas sobre o negro são mais difundidas. Ao mesmo tempo, por ser a instituição social responsável pela transmissão do conhecimento e marcada pela diversidade, é também ambiente privilegiado para a promoção de relações étnico-raciais positivas. (VERRANGIA e SILVA, 2010) Transformar as relações étnico-raciais no Brasil é um desafio que precisa ser encarado pelos profissionais da educação como um todo. Desde a aprovação da Lei de 2003, muitas iniciativas importantes vêm se multiplicando. Mas ainda são muitas as dificuldades a serem vencidas para que uma educação antirracista seja realidade nas escolas. Muitos fatores impedem que tais discussões sejam encaradas pelo sistema escolar brasileiro. Em nossa experiência no projeto de extensão envolvendo as escolas públicas dos anos finais do ensino fundamental em Viçosa, observamos que apesar de reconhecerem a importância da lei, os docentes enfrentam diversos obstáculos à aplicação da educação das relações étnico-raciais. Os professores alegam inexistência de orientações específicas e materiais didáticos adequados, dificuldade de sair do currículo oficial em que se enquadra o livro didático utilizado e até mesmo receio de trabalhar a temática em sala de aula, pelo medo da repercussão entre os alunos. Todavia, é urgente promover a descolonização dos currículos, a partir da adoção de um ensino que valorize a realidade social dos estudantes e
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denuncie o empobrecimento do conteudismo em detrimento da formação humana. Para tanto, precisamos fazer com que cada vez mais professoras e professores se tornem reflexivos sobre as culturas silenciadas nos currículos, para que essas reflexões se transformem efetivamente em práticas escolares libertadoras. (GOMES, 2012) No ensino de história, é essencial que se reconheça a complexidade das questões envolvidas no ato de ensinar, a especificidade do saber escolar e o reconhecimento da sala de aula como espaço de trocas de saberes distintos que se recriam. (MONTEIRO, 2003) E é neste sentido que Ana Monteiro dá importância ao lugar da memória no ensino de história, sendo o estudante desafiado a refletir criticamente sobre a sua história e a história do seu país, ao cotejar a memória do que é vivido com o ensinado/aprendido. A escola promove a reconfiguração destes saberes, tornando-os singulares na construção de conhecimentos e de memórias que confrontam visões de mundo distintas. (MONTEIRO, 2020). Neste sentido, o ponto de partida é o estabelecimento de uma mudança de paradigmas que promova uma nova forma de pensar os temas e não apenas a inserção de novos conteúdos. (GOMES, 2012) E para isto, é necessário que os valores a serem desenvolvidos pelos estudantes - os objetivos do ensino - sejam definidos a priori e só depois é que os conteúdos e procedimentos de ensino adequados são selecionados. (VERRANGIA e SILVA, 2010) Sendo assim, esta proposta didática fundamenta-se na sugestão de uma atividade que deverá suscitar uma reflexão sobre as lutas da população negra pela conquista de direitos políticos, articulando formação para a cidadania, história regional e educação das relações étnicoraciais em perspectiva histórica. Fontes históricas têm sido cada vez mais utilizadas como ferramenta de ensino, por despertar a curiosidade pela produção do conhecimento histórico. Além disso, o ensino de aspectos da história regional que se
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entrelaçam com grandes discussões sobre a história nacional tem o potencial de aproximar o ensino da realidade dos estudantes, colaborando para uma identificação destes com a sua própria história e favorecendo uma aprendizagem verdadeiramente significativa. Como bem disse Ana Monteiro, ensinar é “fazer conhecer pelos sinais, é produzir significados.” (MONTEIRO, 2003) A historiografia tem destacado que Minas Gerais foi a maior província escravista do país no Império, fato que contribuiu para o predomínio de afrodescendentes em sua população. Além disso, ao longo de todo o século XIX, grande parte da população no Brasil e em Minas Gerais era constituída por pardos ou negros livres. Estas questões têm sido sistematicamente ignoradas nas narrativas dos livros didáticos, especialmente se considerarmos que a história de Minas Gerais só é destacada em conteúdos considerados oficialmente importantes para se contar a história do país. São os conteúdos tradicionalmente relacionados à mineração na Colônia e à política na chamada “República do café com leite” que aparecem vinculados à história mineira. Localizada há pouco mais de 100 quilômetros da antiga capital mineira, em 1837, Santa Rita do Turvo era um arraial com pouco menos de 2 mil habitantes e pertencia ao distrito do Pomba, termo de Mariana. Viçosa de Santa Rita foi elevada à cidade em 1876. (CUNHA MATOS, 1981) Atualmente, Viçosa possui aproximadamente 80.000 habitantes. Segundo o Censo Escolar de 2018, o município possui 4.104 matrículas nos anos finais do ensino fundamental, sendo 3.058 na rede pública e 1.046 na rede privada. Destes, 31,58% são brancos, 10,28% pretos, 38,62% pardos, 0,38% amarelos e 0,12% indígenas. Ou seja, 48,90% dos estudantes desta etapa de ensino em Viçosa são autodeclarados pretos e pardos. E tendo em vista a marcante desigualdade racial do país, pode-se inferir que o percentual de pretos e pardos é maior, se analisarmos apenas os dados das
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escolas públicas. (INEP, 2018) Estes números revelam a urgência em tornar efetiva a educação das relações étnico-raciais na rede pública de Viçosa, pois não discutir a temática racial é contribuir para que a história e cultura da população negra continuem sendo silenciadas nos currículos. Cidadania e Raça em perspectiva diacrônica – a linha do tempo.
Esta proposta foi estruturada a partir de uma linha do tempo composta por informações sobre a história do voto no Brasil e em Minas Gerais, com foco nos avanços e recuos na inclusão da população negra na cidadania política. O uso da ferramenta didática da linha do tempo permitirá criar situações de aprendizagem que levem os estudantes a identificar características, diferenças e semelhanças em diferentes tempos, inclusive o tempo e espaço dos estudantes. No processo de construção do saber escolar, o conhecimento é descontextualizado das questões específicas de pesquisa e se ressignifica para atender aos objetivos educacionais. (MONTEIRO, 2003) E para que as fontes históricas apresentadas e a abordagem atendam à finalidade didática, é preciso que elas estabeleçam relações entre si a partir de um conceito histórico analisado na perspectiva da longa duração. As fontes provocarão reflexões, favorecendo a compreensão de uma temática que relaciona contextos históricos distintos. A proposta é que docente e estudantes construam uma linha do tempo cujo tema de interesse seja a temática racial e o direito ao voto em Minas Gerais e no Brasil, do Império aos dias atuais. Fontes documentais como Listas Nominativas de Minas Gerais, Constituição, Leis, Relatórios Ministeriais, Atas Eleitorais e Listas de Qualificação de Votantes, Jornais Mineiros, Estatísticas Eleitorais do TSE, Censos Demográficos, Anuários Estatísticos do IBGE nortearão a atividade, mas a ideia é que esta seja construída coletivamente. As sugestões não precisam ser seguidas à risca, uma vez que a aplicação da proposta
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dependerá dos atores envolvidos. A linha do tempo poderá ser elaborada em forma de mural e montado no pátio da escola. Além dos dados aqui sugeridos, os estudantes devem contribuir com a pesquisa de fontes que os auxiliem a articular o debate à realidade vivenciada. Longe de representar um retrato cronológico rígido e factual, é importante que a linha do tempo enfatize a cidadania e a temática racial como eixo condutor de toda a atividade, para que o estudante não fique preso à questão temporal ou aos conteúdos, mas compreenda que há um conceito de longa historicidade que une a problematização das diferentes temporalidades. É fundamental que tais objetivos fiquem claros. O uso do conceito de cidadania permitirá que se estabeleça comparações entre épocas diferentes sobre os direitos políticos da população negra. Sempre que preciso, este pode ser reformulado para dar conta de diferentes historicidades. Cidadania pode ser concebida de maneira ampla, como todas as possibilidades de relação entre sociedade e Estado, o que engloba analisar os direitos sociais, civis e políticos do cidadão. Este trabalho pretende focar na noção de cidadania enquanto direito político, que abrange principalmente os direitos de votar e ser votado. Há um recorte para fins didáticos, mas isto não impede que o conceito de cidadania seja alargado em reflexões mais abrangentes, que considerem as infinitas formas de participação política. Voltando à proposta em foco, algumas questões deverão ser formuladas em sala de aula: quem podia votar e ser votado nos diferentes períodos analisados? Qual a posição destas pessoas na hierarquia social? Como funciona a participação no sistema eleitoral hoje? Qual o nível de escolaridade destes indivíduos, condição social (escravo, livre, liberto) e condição socioeconômica? Enfim, qual o perfil dos cidadãos que podiam escolher seus representantes e o perfil dos representantes eleitos? Indivíduos da população negra possuíam direito ao voto e ocuparam cargos eletivos? Quais as diferenças e similitudes em relação aos dias atuais?
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A história narrada na linha do tempo começa com a primeira constituição do país, outorgada em 1824. O Art. 92 da Constituição de 1824 definiu quem ficou excluído dos direitos políticos: menores de 25 anos, salvo se casados, oficiais militares ou clérigos; “filhos família”, os filhos dependentes dos pais; criados de servir; religiosos em regime de clausura, praças e marinheiros. Mulheres, indígenas e escravizados sequer foram citados. A restrição mais relevante à população livre masculina foi a introdução do critério de renda. (CONSTITUIÇÃO, 1824; LEI, 1846) Figura n. 1 Art. 92 da Constituição do Império de 1824 (Art. 18 - Lei de 1846).
Fonte: Constituição do Império do Brasil de 1824; Lei Eleitoral de 1846.
A eleição era feita em dois turnos: a cada ano e antes da eleição, a junta de qualificação de cada freguesia fazia a lista de quem se enquadrava como votante; no primeiro turno (eleição primária), os votantes escolhiam os eleitores na proporção de um eleitor a cada cem domicílios; no segundo turno (eleição secundária), os eleitores elegiam juízes de paz, vereadores, deputados e senadores. O cargo de senador era vitalício: quando falecia um senador, procedia-se às eleições e a lista tríplice era enviada ao imperador que escolhia o senador a ser nomeado. (FREITAS, 2015.)
224 | Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares Figura n. 2 Sistema de Eleições Indiretas 1846-1881. VOTANTES
Eleições Primárias
ELEITORES Eleições Secundárias
Eleições Locais:
Eleições Regionais:
Eleições Gerais:
Eleições Gerais:
(Juiz de paz e Vereadores)
Deputados Provinciais
Deputados Gerais
Senadores (cargo vitalício)
Fonte: Elaboração própria baseada na Lei Eleitoral n. 387 de 19 de agosto de 1846.
A paróquia ou freguesia era a unidade fundamental da vida política no Império. No interior das igrejas, ocorriam os alistamentos e as eleições. Por ser capital da província mais populosa e com maior número de deputados e senadores ao longo do Império, Ouro Preto foi importante cenário de atuação das elites políticas mineiras fornecedora de quadros que compunham a cúpula da política nacional. (FREITAS, 2015) A cidade só perdeu sua importância com a transferência da capital para Belo Horizonte em 1897 e a consequente paralisia econômica, só restabelecida nos anos 1920. Redescoberta pelos modernistas, a cidade de arquitetura barroca “curiosamente conservada pelo quadro de congelamento econômico”, beneficiouse da revalorização do seu patrimônio consolidado pela fundação do SPHAN (atual IPHAN) em 1937. (LOTT, 2009) As listas nominativas de 1831 e 1838 foram elaboradas por juízes de paz das localidades, atendendo às determinações do governo mineiro para fins de levantamentos eleitorais, cobrança de impostos e recrutamento militar. Este conjunto documental é considerado a primeira tentativa de recenseamento realizado em Minas, décadas antes do Censo de 1872, o primeiro do país. Tais listas possuem dados dos habitantes como cor,
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condição social, ocupação, posse de escravizados, se é alfabetizado. (LISTA, 1838) Gráfico n. 1 População da Freguesia de Pilar do Ouro Preto por cor, 1838.
cabra/caboclo 3% africano 14%
índio e n/c 0% branco 25%
0%
crioulo 15%
pardo 43% branco
crioulo
pardo
africano
cabra/caboclo
índio e n/c
Fonte: Lista Nominativa da Freguesia de Pilar do Ouro Preto, 1838.
Em 1838, a grande maioria da população da freguesia de Pilar do Ouro Preto era negra (43% pardos; 15% crioulos; e 14% africanos). Os escravizados representavam cerca de 23,14% da população desta freguesia. Para os 73,5% da população livre, a exigência de renda era a mais preocupante e durou todo o Império, o que induz à crença de que seria impossível, no Brasil do século XIX, que um pobre e/ou negro tivesse o direito ao voto, apenas relegado aos ricos e brancos. Os libertos podiam votar nas eleições primárias como votantes, desde que comprovassem renda. E ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o valor não era tão elevado e cidadãos com profissões modestas como costureiro, carpinteiro possuíam renda suficiente para ter direito ao voto. O Brasil do século XIX era uma das maiores populações escravizadas das Américas e possuía o maior contingente de pessoas negras livres. Metade da população livre brasileira era definida como preta ou parda. (CENSO, 1872) Os dados são impactantes, mas curiosamente, durante muito tempo, não se questionou essa lacuna sobre as experiências destes
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sujeitos históricos negros e livres. Quais eram as definições de cidadania para a imensa população livre afrodescendente durante o Império? A análise das listas de votantes revela que o perfil dos indivíduos que podiam votar era heterogêneo, sendo comum a presença de pretos e pardos livres. (VOTANTES, 1846-1888) Era mais difícil tornar-se eleitor. As eleições primárias representavam o funil onde apenas um seleto grupo de maioria branca e rica conseguia chegar às eleições secundárias. Os pleitos eram muito disputados, pois eram de suma importância para a composição da elite política provincial e até mesmo nacional. Isto torna ainda mais significativo o fato de que era possível a um negro chegar ao seleto grupo de cidadãos aptos a votar, a ser votado e, por fim, a ocupar postos importantes na elite política provincial. (ATAS ELEITORAIS, 1846-1880) Ainda que muitas vagas de eleitores fossem ocupadas por brancos, o levantamento dos eleitores da freguesia revelou que indivíduos pardos conseguiram se eleger. Sendo assim, uma breve exposição da trajetória de um eleitor pardo pode ser útil na linha do tempo. Feliciano Ferreira de Carvalho era filho de Domiciano Francisco de Carvalho, lavrador e eleito nas eleições primárias de 1847. Em 1845, Feliciano se tornou padre da freguesia de Pilar do Ouro Preto. Seis anos depois e exatamente no período em que ali atuou, saiu vitorioso das eleições primárias em 1851, 1856, 1860 e 1863. Tudo indica que o fato de Feliciano ter se tornado uma liderança eclesiástica foi decisivo em suas vitórias nas eleições paroquiais. (ATAS ELEITORAIS, 1846-1888)
Ana Paula Ribeiro Freitas | 227 Quadro n. 1 Eleitores da Freguesia de Pilar do Ouro Preto, 1863. Eleitores
Votos
Principais Ocupações
Joaquim José de Santana
276
Padre
Francisco Teixeira do Amaral
267
Negociante atacadista
Calisto José de Arieira
255
Farmacêutico; professor Escola de Farmácia
Carlos Thomaz de Magalhães
253
Médico
Feliciano Ferreira de Carvalho
246
Padre
Carlos José Albano Antônio
237
Comendador
Francisco de Paula Vieira
230
Negociante atacadista
Manoel Joaquim de Lemos
221
Advogado
José Baptista de Figueiredo
208
Negociante atacadista
Manoel Pereira de Andrade
187
Negociante
Raymundo Nonato da Silva Athayde
174
Negociante; Chefe de Estado Maior - Guarda Nacional
Fonte: Ata da Eleição de Eleitores da Freguesia de Pilar do Ouro Preto, 1863.
Os párocos desempenhavam atribuições importantes no Império, sendo responsáveis pela sistematização de informações prestadas à presidência da província, como mapas de batismos, casamentos, óbitos e a realização dos alistamentos. A freguesia era a referência tanto religiosa como administrativa e não era raro ter muitos padres envolvidos na política local e provincial, tendo lideranças ocupando cargos no Governo Provincial, no Legislativo Provincial, na Câmara dos Deputados e Senado. A historiografia aponta para uma heterogeneidade da origem social do clero comparada às demais camadas da elite política na Colônia e Império. O sacerdócio era visto por negros e pobres como uma das poucas oportunidades de formação intelectual e mobilidade social. Sendo assim, a origem social do clero era mais democrática, o que os tornava líderes populares em potencial, por sua origem social, a proximidade com a população, permanecendo longos períodos em seus postos. (CARVALHO, 2010) O fato de indivíduos ‘pardos’ conseguirem eleger-se revela que, mesmo diante de um contexto que relegava 23% da população local à
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escravidão, pretos e pardos livres foram capazes de circular por vários espaços sociais, desempenhando importantes papéis. Isto não quer dizer que a hierarquia racial não era uma barreira social. Mas esses sujeitos criaram estratégias para enfrentar o racismo, buscando afirmação social nesse universo escravocrata. Estes exemplos merecem ser incorporados às aulas, pelo potencial que tais biografias têm de revelar a agência histórica de indivíduos da população negra livre que se envolveram no jogo político provincial. A elite política mineira do Oitocentos foi heterogênea quanto à sua origem social e formação. Magistrados, fazendeiros, comerciantes, padres, professores e outros servidores públicos eram os principais atores dessa elite. (SILVA, 2009) Neste sentido, a trajetória do cônego José Antônio Marinho merece atenção na linha do tempo, por se tratar de um menino de origem humilde e ‘de cor’ que se tornou liderança política importante na província na primeira metade do século XIX. José Antônio Marinho nasceu em 1803 no povoado de Brejo Salgado, em Januária, norte mineiro. Filho dos lavradores pobres Antônio José Marinho e Maria Escolástica de Jesus, foi alfabetizado pelo avô. Seu interesse nos estudos tornou-se notório e um fazendeiro local decidiu enviá-lo para estudar no Seminário de Olinda. Em Pernambuco, envolveu-se como soldado na Confederação do Equador em 1824 e, após a repressão à revolta, não foi mais aceito no Seminário. Sem recursos, retornou a pé para Minas e passou dificuldades até conseguir um emprego de professor primário. Em 1828, ingressou no Seminário do Caraça, onde se destacou a ponto de concluir os estudos e tornar-se professor na mesma instituição. Foi ordenado em 1829. Atuou também como advogado provisionado (autodidata). Foi professor em Congonhas e Ouro Preto de 1831 a 1835 e diretor do Colégio de S. João del Rei, em 1835. (IGLESIAS, 1977)
Ana Paula Ribeiro Freitas | 229
A sua entrada no cenário político mineiro iniciou em 1833, quando foi eleito juiz de paz de uma das freguesias de Ouro Preto. Em seguida, foi eleito deputado provincial em duas legislaturas (1835-1837 e 1838-1839), sendo novamente eleito para a legislatura de 1842-1843. Marinho ingressou no cenário político da Corte após eleger-se suplente de deputado geral em 1838-1841. Em 1839, foi empossado, após o falecimento de um representante mineiro. E em 1842, foi enfim eleito deputado geral, justamente na legislatura dissolvida pelo imperador. A dissolução da Câmara dos Deputados deu origem à revolta dos liberais em São Paulo e Minas que ficou conhecido como Movimento Liberal de 1842. Marinho não apenas participou da revolta, como tornou-se notório por narrar e defender o movimento. (MARINHO, 1977) Figura n. 3 Frontispício da 2ª edição do Livro de José Antônio Marinho.
Fonte: MARINHO, José Antônio. História do Movimento Político de 1842. (2ª Edição, 1939).
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Após a anistia, foi nomeado Diretor Geral dos Índios em 1845 e eleito deputado geral em 1845-47 e 1848-50. A instrução pública era tema central em suas propostas. Em 1846, ocupou o cargo de procurador fiscal da Tesouraria Provincial. A vida política o aproximou da atuação na imprensa. Em São João del Rei, atuou nos jornais “Americano”, “Astro de Minas”, “Despertador Mineiro” e também foi eleito vereador. Em Ouro preto, chefiou a redação do “Constitucional”. Na Corte, foi jornalista do “Correio Mercantil” de 1847 a 1849. Afastou-se da política em 1849 e fundou o Colégio Marinho no Rio de Janeiro, que veio a tornar-se um dos colégios de maior prestígio da Corte. Faleceu em 1853. (IGLESIAS, 1977) A trajetória do cônego Marinho é um exemplo emblemático das possibilidades de inserção de homens livres pobres e pardos na vida política no Oitocentos mineiro. Marinho entrou para o Seminário, se envolveu em dois conflitos armados, ocupou diversos cargos importantes. Sua biografia revela uma realidade histórica da população negra no Brasil monárquico que é complexa e não se reduz à velha dicotomia da relação senhor versus escravo. A possibilidade de expansão dos direitos políticos à população negra sempre preocupou grande parte da elite política. A lei eleitoral de 1875 passou a exigir que se apresentassem provas documentais da renda nos alistamentos de votantes. Neste momento da linha do tempo, é interessante que o estudante conheça o primeiro título eleitoral do país, que trazia informações como idade, profissão, renda, se era alfabetizado.
Ana Paula Ribeiro Freitas | 231 Figura n. 4 Primeiro Título eleitoral do Brasil, 1875.
Fonte: Acervo do site do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais.
Até 1881, quando uma nova lei eleitoral foi aprovada, era grande o número de votantes. Mas essa lei eliminou a eleição em dois turnos e proibiu o voto dos analfabetos. O parágrafo 1º do Art. 8 da Lei de 1881 dá a tônica do significado da proibição do chamado ‘censo literário’ para grande parte do eleitorado do Império.
232 | Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares Figura n. 5 Trecho da Lei Eleitoral de 1881, sobre o ‘censo literário’.
Fonte: BRASIL, Lei Eleitoral n. 3029 de 9 de janeiro de 1881.
Além da proibição do voto do analfabeto, mecanismos burocráticos foram criados para dificultar o acesso, com exigências mais severas para verificar renda. As elites temiam a expansão do eleitorado em um contexto que grande parte da população brasileira era negra e parda e a pressão pela libertação dos escravizados crescia em todo o país. O gráfico abaixo pode ser utilizado em sala de aula para demonstrar o impacto da Lei de 1881 nas diferentes escalas. Minas e Ouro Preto acompanharam a tendência nacional de redução do eleitorado. Onze freguesias compunham o Termo de Ouro Preto e a freguesia do Pilar abrangia o território urbano da capital. Em todos os cenários, esta redução aproximou-se do percentual de 1% da população.
Ana Paula Ribeiro Freitas | 233 Gráfico n. 2 Eleitorado das Freguesias do Termo de Ouro Preto, 1872 e 1882.
14%
13%
12% 10%
8,60%
8,02%
8%
6,01%
6% 4% 2%
1,16%
1,18%
1,75%
1,80%
0% Brasil
Minas Gerais 1872
Termo de Ouro Preto Freguesia Pilar do Ouro Preto 1882
Fonte: Relatórios do Ministério do Império, 1870 e 1881; Censos de 1872 e 1890.
Em 1872, havia mais de 1 milhão de votantes no país, correspondendo a 13% da população livre. (AEB, 1936) Em 1886, votaram nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou 0,8% da população total. (CARVALHO, 2004). Não é coincidência lembrar que esta redução drástica do eleitorado acontece num período em que as pressões pela abolição da escravatura se tornavam cada vez mais intensas. Os anos 1880 foram marcados pelo incremento das lutas abolicionistas em todo o país. E para além do exercício do voto, os negros criaram espaços capazes de oferecer outras possibilidades de participação política, a partir de inúmeras redes de sociabilidades. Ouro Preto concentrou o maior número de sociedades abolicionistas da província ao longo da década de 1880. (COTA, 2007) Em 13 de maio de 1888, foi declarada extinta a escravidão. Nos dias que se seguiram, jornais da Corte e de todas as regiões do país repercutiam a notícia:
234 | Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares Figura n. 6 A notícia da Abolição no Jornal A Província de Minas, 1888.
Fonte: A Província de Minas, Ouro Preto, 18.05.1888.
A Abolição e a República assinalaram um ponto de inflexão na história da cidadania brasileira, ao tornar realidade jurídica o princípio da equidade política. (GOMES, 2003) Mas embora fosse uma medida crucial para incorporar os recém-libertos aos direitos civis, a abolição foi decretada sem definir qualquer política de destino para os libertos. Ao mesmo tempo em que o Estado apoiava a imigração estrangeira, não havia sequer uma proposta que garantisse educação, terra ou trabalho à população negra. Ao invés de extinguir as distinções raciais, as primeiras décadas de regime republicano ajudaram a solidificar o domínio das elites brancas, em campanha pelo embranquecimento da população. (ANDREWS, 1998) Mas mesmo nesse quadro de racismo, de exclusão do eleitorado e de práticas políticas oligárquicas que marcaram o alvorecer da República no
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Brasil, não se pode perder de vista as trajetórias de indivíduos e coletividades negras que buscaram marcar o seu lugar nos mais variados espaços. Neste sentido, a eleição do líder negro Monteiro Lopes pode ser incorporada à linha do tempo. Monteiro Lopes só conseguiu tomar posse como deputado federal eleito em 1909, após ampla agitação popular em prol de seu mandato. “Viva a República sem o preconceito de cor!” foi o lema da campanha para garantir sua posse. A eleição de Monteiro Lopes revela a valorização da representação política formal como espaço importante na luta por igualdade racial. (DANTAS, 2011) Sempre que o número de eleitores se expandia, os legisladores alegavam fraudes no alistamento, justificando novas restrições. Duas leis eleitorais foram adotadas em 1904 e 1916, viabilizando a construção de uma série de barreiras burocráticas para impedir o cidadão de se alistar e/ou votar, sob o falso pretexto de defesa da lisura e aperfeiçoamento do sistema. (SOUZA, 2020) O aumento da distância entre eleitores e órgãos eleitorais foi outro aspecto relevante, que resultou na redução dos locais de alistamento e de votação. A quantidade de órgãos para inscrição despencou entre 1914 e 1915 de 1.266 para 650. E a lenta tendência de ampliação dos locais de votação de 1881 até 1911, foi não apenas interrompida como reduzida à quase metade de 1912 a 1916 (de 6.842 a 3.470 órgãos). (SOUZA, 2017) As novas regras eleitorais instituídas em 1932-33 ampliaram o sufrágio e estenderam o voto às mulheres. Apesar da conquista do voto feminino, só após o fim da ditadura do Estado Novo é que o total de participação de 1872 foi superado, com o comparecimento de 16,5% dos brasileiros às urnas na eleição presidencial de 1945.
236 | Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares Gráfico n. 3 Percentual do Eleitorado na População Brasileira (1869-1962). 25,00% 20% 20,00%
18% 16,50%
15,00%
15,90%
13% 10,90%
10,00%
10,20% 4,69% 5% 3,44%
5,00%
5,51%
6,53% 5,60%
3,67% 1,40% 0,80%
0,00%
1869 1872 1873 1881 1886 1905 1909 1910 1912 1926 1930 1934 1945 1950 1960 1962
Fonte: Relatórios Ministeriais, 1870 e 1881; Censos de 1872 e 1890; AEB, 1908-1962.
Minas Gerais acompanhou a tendência nacional de queda do eleitorado durante a Primeira República e ampliação deste percentual de 1934 até 1950. Mas diferentemente da tendência nacional, entre 1950 e 1960, Minas registrou uma redução de 3,16%: Gráfico n. 4 Percentual do Eleitorado na População Mineira (1869-1960). 30% 25,11% 25%
21,95%
20% 15% 10%
7,11%
8% 5,34%
5% 1% 0% 1869
1881
1910
1934
1950
1960
Fonte: Relatórios Ministeriais, 1870 e 1881; Censos de 1872 e 1890; AEB, 1908-1962.
Os gráficos acima podem ser explorados para demonstrar a trajetória da participação da população nas eleições por quase cem anos: a queda do
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eleitorado após 1881 e lenta ampliação de 1945 até pouco antes do golpe de 1964, quando aproximadamente 20% da população brasileira (21,95% em Minas Gerais) podia votar. Após o golpe, o AI2 de 1965 aboliu a eleição direta para presidente da república e dissolveu partidos políticos, estabelecendo um sistema de dois partidos, e o AI5 de 1968 fechou o Congresso. A abertura política começou em 1974, mas o processo foi lento e só em 1985 o país pôde eleger um presidente civil, após anos de ditadura. Em 1989, após a promulgação da Constituição mais democrática que o país já teve, ocorreu a primeira eleição direta para presidente desde 1960. A Constituição Cidadã de 1988 eliminou o maior obstáculo ao voto universal, tornando o voto facultativo ao analfabeto e permitiu que, já na eleição presidencial de 1989, 72,2 milhões de brasileiros votassem. Em 1994, 77,9 milhões. Em 1998, 83,4 milhões, totalizando 51% da população. (AEB, 1990-2014) Gráfico n. 5 Taxa de Analfabetos na População Brasileira (1872-2019). 100% 90% 80%
40
70% 60%
65 84
65
56
34
14
10
9
8
86
90
91
92
85
40% 30%
60
20%
35 16
6,6
51
50%
10%
7,1
26
35
44
66
92,9 93,4
75
49
15
0% 1872 1890 1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 2000 2010 2011 2015 2016 2019 Sabe ler/escrever
Analfabetos
Fonte: AEB, 1908-1986; 1990-2014; Censos, 1872-2010; PNAD, 2019.
Em 2019, o analfabetismo é maior entre idosos e pretos/pardos, o que apenas confirma a exclusão da população negra do acesso à educação
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básica por décadas. Entre os idosos pretos e pardos, o percentual chega a 27,1%. Gráfico n. 6 Taxa de Analfabetismo por Raça/Cor e por Grupos de Idade, 2019.
40 20
27,1 6,6 3,6 8,9 6,9 3,8 9,5 7,9 4,2
11
11,1
15,9 18 5,7
9,5 Taxa
15 anos ou +
18 anos ou +
25 anos ou +
40 anos ou +
Pretos/Pardos
Brancos
Total
Pretos/Pardos
Brancos
Total
Pretos/Pardos
Brancos
Total
Pretos/Pardos
Brancos
Total
Pretos/Pardos
Brancos
Total
60 anos ou +
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), 2019.
Entretanto, a redução da alfabetização entre a população negra jovem revela que a expansão da educação básica democratizou o acesso aos negros. Após trinta anos desde a instituição da educação básica obrigatória, o percentual de analfabetos começou a diminuir e o país assistiu à inclusão dos filhos de famílias de classes média e operária nos ensinos fundamental, médio e superior. Mas o percentual ainda é muito inferior ao quantitativo de brancos com maior escolaridade. Conclusões
Esta proposta de ensino de história pretende favorecer a formação de uma conscientização política da importância da luta dos negros na conquista de direitos políticos e demais direitos no país. A manutenção do envolvimento popular em níveis baixos foi traço constante da lógica do sistema político brasileiro, sofreu avanços e retrocessos ao longo da história, tendo vivido o pior momento nos anos da ditadura, com a cassação de
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direitos políticos e civis. Mas desde o Império, a justificativa para a exclusão era preconceituosa, pois a elite política alegava que analfabetos e pobres não possuíam entendimento e independência para exercer adequadamente a função do voto, resultando em corrupção eleitoral. (FREITAS, 2015) O verdadeiro agente corruptor do sistema eleitoral era o Estado e as elites, mas o argumento utilizado para restringir o direito ao voto invertia a lógica, colocando rotineiramente a culpa no cidadão analfabeto, pobre e predominantemente negro. Um argumento que, ainda hoje, não perdeu força em nossa elite política. E é por essa razão que tais reflexões necessariamente devem suscitar debate em sala de aula sobre a própria realidade vivida pelos alunos. As escolas públicas são majoritariamente formadas por grande parcela de negros e pobres. Educar para as relações étnico-raciais é permitir que os estudantes tenham a oportunidade de repensar a própria história enquanto cidadãos constituidores de uma nação e ressignificar o seu papel na sociedade. É contribuir para a formação de sujeitos comprometidos com a transformação da realidade social, através do despertar do conhecimento crítico tão fundamental ao exercício da cidadania. Fontes Alistamento de Votantes da Freguesia de Pilar do Ouro Preto, Arquivo Público da Câmara Municipal de Ouro Preto. (1846-1888). A Província de Minas, 1888. Disponível em: Acesso em 17.09.2020. Atas Eleitorais da Freguesia de Pilar do Ouro Preto, Arquivo Público da Câmara Municipal de Ouro Preto. (1846-1888).
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Parecer
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Ana Paula Ribeiro Freitas | 241
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Anuário
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Censo
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da
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2018.
Disponível
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Acesso em 08.01.2020. MARINHO, J. A. História do Movimento Político de 1842. 2ª ed. Conselheiro Lafayette: Tipographia Almeida, 1939. (1ª edição: 1844) Listas Nominativas da Década de 1830 da Província de Minas Gerais. Disponível em: Acesso em: 07.01.2020. TRE-MG, Memória Eleitoral. Disponível em: Acesso em: 07.09.2020. TSE. Dados Estatísticos: Eleições federal, estadual e municipal realizadas a partir de 1945. Rio de Janeiro: TSE, 1950. Disponível em: Acesso em: 15.12.2019. Referências ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: EDUSC, 1998. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. _______. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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11 História da África, Terceiro Mundo e Guerra Fria: uma proposta didática para o Ensino Médio Taciana Almeida Garrido de Resende 1 Introdução
Ao analisar o campo dos estudos africanos no Brasil hoje, é preciso reconhecer que comunidade acadêmica e docentes da Educação Básica caminharam muito desde 2003. Com a promulgação da lei 10.639, modificou-se a composição de departamentos de História no país, com a contratação de novos professores especialistas em História da África e história e cultura afro-brasileira. Além disso, docentes do Ensino Fundamental e Médio tiveram que repensar suas práticas e ampliar seus conhecimentos sobre o tema. Dezoito anos depois da aprovação da lei, é notória a excelência das pesquisas em nossas universidades, o investimento dos profissionais da educação básica na complementação de saberes para atender à legislação e o empenho das instituições de ensino superior em oferecer cursos de formação continuada e de extensão aos interessados. Para além da formação de um campo de estudos, a lei, como afirma Katiúscia Ribeiro Pontes, é uma vitória e também uma ferramenta essencial para a educação das relações étnico-raciais no país. Com ela, caminhase na direção da reconstrução imagética da África, do diálogo antirracista e de valorização da pluralidade de identidades (PONTES, 2017, p. 22). Complementar à lei, a resolução n.1 de 17 junho de 2004 estabelece as
1
Doutoranda em História e Culturas Políticas UFMG, Professora Instituto Federal de Minas Gerais.
Taciana Almeida Garrido de Resende | 245
diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana. Esta resolução concretiza uma política educacional de Estado e as estratégias pedagógicas para a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada (BRASIL, 2004), colocando em prática as indicações da Constituição de 1988 para a educação no Brasil. Com um passado escravista tão presente, a demanda da comunidade afro-brasileira é por reconhecimento e valorização e, a partir da lei, são questionados em sala de aula os preconceitos que desqualificam pessoas negras e ressaltam estereótipos. Com ela, busca-se a valorização, divulgação e respeito à História africana anterior aos contatos com os europeus e também dos processos históricos de resistência negra no Brasil, além das conquistas e experiências afrodescendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas (Brasil, 2004). A partir desse panorama, é interessante tentar mapear o cenário sobre como esse conteúdo vem sendo ministrado nas salas de aula. A pesquisadora Nilma Gomes demonstra em seu relatório apresentado ao Ministério da Educação que, em sua maioria, as práticas pedagógicas sobre história da África e cultura afro-brasileira são ainda ações isoladas no contexto escolar, sendo que essas práticas “geralmente não têm continuidade nem conseguem ser socializadas e divulgadas para além do local onde se realizam” (GOMES, 2012, p.12). Com resultado de pesquisa semelhante, a pesquisadora Raquel Bakke, em sua tese de doutorado, observa a recorrência com que conteúdos da cultura afro-brasileira, principalmente, são trabalhados em virtude de datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, por exemplo, sem preparação do profissional ou sem desdobramento posterior do assunto discutido. As atividades, desse modo,
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permanecem restritas a datas específicas ou deslocadas dentro do conteúdo da disciplina, ou seja, implementa-se a lei 10.639/03, mas “através de realização de eventos, cortes temporários no tempo e na prática escolar em que se discute o assunto, antes não abordado, para voltar a abandonálo no restante do ano letivo” (BAKKE, 2011, p. 86-88). Há vários outros desafios que compõem esse conjunto, como os estereótipos perpetuados pelos livros didáticos (SILVA, 1999; 2002; OLIVA, 2007; 2009) e a resistência de famílias, alunos e mesmo de alguns profissionais ao ensino das relações étnico-raciais e da História africana, em razão da intolerância religiosa (BAKKE, 2011). Sem a pretensão de contemplar aqui todos os obstáculos e querelas, o objetivo é propor alternativas didáticas aos entraves do que foi identificado por Nilma Gomes e daquilo que Ana Lúcia Lopes chamou de “pedagogia do evento” (apud BAKKE, 2011, p. 86) e indicar algumas possibilidades para a inclusão da História da África nas aulas sobre Guerra Fria, a partir da proposta de Ali Mazrui, para quem “a história da África contemporânea não pode ser compreendida plenamente senão quando inserida no contexto mais amplo da história mundial.” (MAZRUI, 2010, p. 7). Na mesma linha, Marina de Mello e Souza indica a inclusão da agência africana não de modo isolado no conteúdo, mas inserido nos recortes temporais mais comumente trabalhados em sala de aula (SOUZA, 2012, p. 24-25). Assim, este trabalho pretende ser uma contribuição para docentes que queiram expandir seus conhecimentos e propor uma complexificação e diversidade de entendimento a respeito da História Contemporânea, ressaltando, inclusive, seu aspecto de interseccionalidade com as Relações Internacionais, a Geografia, a Filosofia e a Sociologia. Tal objetivo poderia ser alcançado de várias formas, dando destaque aos processos africanos de independência, às relações de lideranças do continente com a União Soviética ou com os Estados Unidos, ou com suas
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próprias metrópoles europeias, por meio de trajetórias intelectuais específicas ou mesmo da relação de Angola e Cuba, que marcaria por tantas décadas a história de ambos os países em razão da Operação Carlota – ação militar cubana em Angola iniciada em 1975 em apoio ao MPLA na guerra civil. Convido, no entanto, para que deixemos os guerrilheiros de sentinela e nos voltemos para uma esfera mais protocolar dessas histórias, mas não menos interessante, que é das conferências internacionais do Terceiro Mundo. Da relação entre o fazer historiográfico e o ensino na Educação Básica, a ideia central é problematizar a visão comumente adotada para o ensino da Guerra Fria e propor abordagens inclusivas, que destaquem as conexões entre agentes africanos e o resto do mundo nesse conflito global tão importante para o entendimento de parte do século XX e para questionar suas heranças no século XXI. O professor poderá consultar também a discussão historiográfica sobre Guerra Fria e Conferências do Terceiro Mundo no capítulo 5 deste livro, caso precise se familiarizar com o tema. Proposta de Sequência didática
Fernando Seffner defende que, para garantir uma aprendizagem significativa da História, isto é, garantir o estudo da História também como instrumento para “modificar, de alguma forma, impressões e opiniões do indivíduo sobre o presente” (SEFFNER, 1998, p. 37), o professor deve propor o estudo do passado, incentivando a identificação de permanências e rupturas, sem perder de vista o contemporâneo (p. 36-37). Este entendimento sobre o mundo que a reflexão histórica traz, diz Seffner, é essencial para a vivência do indivíduo em sociedade, “e pressuposto para qualquer outro raciocínio de natureza crítica e mobilizadora” (p. 36). Isto não significa, evidentemente, transformar as aulas de História em aulas de atualidades, mas requer o esforço de propor atividades que provoquem em
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quem estuda o entendimento de que o presente está emaranhado em elementos do passado e em projetos de futuro (SEFFNER, 2018, p.44) Nesse sentido, essa proposta de sequência didática foi pensada para dois encontros de 100 minutos cada, mas poderá ser desmembrada em mais aulas, caso seja necessário. O público-alvo são discentes do Ensino Médio e a aula busca o desenvolvimento das competências 1 e 6 e das habilidades EM13CHS102, EM13CHS601 e EM13CHS604 da mais recente BNCC, mas pode ser adaptada ao ensino fundamental e ser realizada de forma conjunta com a disciplina de Geografia. A competência 1 pretende que, a partir do conteúdo e de práticas pedagógicas, o aluno saiba “analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos [...] de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a eles, considerando diferentes pontos de vista [...].” Analisar criticamente o período da Guerra Fria e conhecer outras práticas políticas além da polaridade EUAURSS enriquece o repertório do estudante, ao mesmo tempo em que fornece arcabouço teórico e conceitual para seu entendimento mais amplo sobre o contexto global. Dentro desta competência, vale destacar algumas habilidades que dialogam com os propósitos da sequência didática aqui apresentada, como a EM13CHS102, que requer “identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos”. O tema da sequência didática contribuiu para que o docente inicie ou aprofunde discussões sobre colonialismo, racismo e etnocentrismo na história, além das consequências dessas experiências para o tempo presente. Essa habilidade também contribui para um entendimento mais amplo a respeito não só do
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contexto, mas das relações de poder em jogo no período. A competência 6, por sua vez, propõe que o estudante desenvolva a capacidade de “participar do debate público de forma crítica, respeitando diferentes posições e fazendo escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”. As atividades práticas inspiradas pelas conferências internacionais do Terceiro Mundo podem abrir um campo de possibilidades para expandir e fortalecer posicionamentos do estudante em questões prementes do debate público. O diálogo com questões da Guerra Fria atendem às habilidades 601 e 604, que buscam a análise de protagonismos diversos, com destaque para a inclusão e exclusão de agentes na ordem social e econômica, além do olhar crítico sobre organismos internacionais do passado e do presente. Para a aula, foram selecionados tanto documentos que auxiliam na compreensão crítica da narrativa focada na bipolaridade do Norte quanto excertos da participação de delegações e representantes africanos para que, dessa forma, seja possível observar os projetos de futuro, as disputas e os conflitos em jogo. A estrutura da aula segue a divisão: objetivo, contextualização, problematização, sistematização, atividade. Objetivos
O objetivo será identificar e criticar a narrativa bipolar da Guerra Fria a partir do conhecimento sobre a participação das delegações africanas em algumas conferências internacionais do Terceiro Mundo e suas repercussões.
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Contextualização
1º momento: Exibição da palestra da escritora nigeriana Chimamanda Adichie “Os perigos de uma História Única”2, disponível no Youtube no canal Ted Talks, com destaque de trechos da palestra que reforcem a necessidade de questionar narrativas homogêneas de histórias tanto pessoais quanto coletivas. 2º momento: Projeção ou impressão, em sequência, do mapa mundi de Mercator (1589), do mapa mundi de Gall-Peters (1970) e da campanha de 2014 do jornal britânico The Guardian para reparar distorções de imagens do Google Maps sobre o continente africano.3 O mapa de James Gall, de 1885, só ficou mais conhecido após a divulgação feita pelo historiador Arno Peters na década de 1970, que o apresentou como um mapa mais fiel à nova configuração internacional. A projeção visava corrigir distorções dos mapas mundi vindas, sobretudo, da representação canônica de Mercator feita no século XVI, sendo amplamente conhecida e divulgada como referência cartográfica por muito tempo. Em sala, vale destacar como o trabalho de Mercator criou uma imagem maior dos países do Norte, confirmando como representações cartográficas não estão isentas de posições ideológicas e implicações políticas. O professor pode chamar a atenção para a data de 1970, perguntar ou dizer o que estava acontecendo no mundo naquele momento e questionar por que era importante divulgar um mapa do século XIX que repensou áreas do planeta Terra. A ideia aqui é mobilizar o mapa como 2
Vídeo com legendas disponível em https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg, vídeo dublado disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ. Ambos com acesso em 25 de maio de 2020. A transcrição traduzida da palestra está disponível em https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_ single_story/transcript?language=pt-BR Acesso em 25 de maio de 2020. 3
Mapping Africa: can you help us fill in the gaps? 4 abr. 2014. The Gardian. Disponível em https://www.theguardian.com/world/2014/apr/04/mapping-africa-can-you-help-us-fill-in-the-gaps?CMP=twt_gu Acesso em 20 de maio de 2020. Para reportagens em português, ver: Sophie Morlin-Yron. Qual é o tamanho real da África? Como os estados ocidentais usaram os mapas para minimizar o tamanho do continente. CNN. Disponível em https://edition.cnn.com/2016/08/18/africa/real-size-of-africa/index.html. Acesso em 20 de maio de 2020.
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ferramenta para a crítica histórica. O mapa de Gall-Peters é também conhecido como “Mapa do Terceiro Mundo”, justamente porque se insere em um contexto de crítica não só de representações cartográficas desiguais, mas de denúncias e ações para modificar a exclusão histórica de parte do globo. Em seguida, pode ser divulgada a campanha iniciada em 2014 para diminuir as distorções atuais do Google Maps sobre o continente africano, chamando a atenção para como o fim da colonização, o domínio de ferramentas tecnológicas e a ampla base de dados do presente não garantem uma representação fiel do continente até hoje e como isso impacta nosso entendimento. A proposta de trabalhar em conjunto, vídeo, imagens cartográficas e texto publicitário, visa a iniciar os questionamentos da sequência didática. A partir daí, é lançado para a turma o desafio de qual parte do globo Arno Peters quis corrigir na década de 1970 e quais seriam as razões disso, iniciando o debate. Problematização
1º momento: No Ensino Médio, a maioria dos estudantes já conhece a Guerra Fria pela ótica da bipolaridade, seja pelo ensino formal ou não. Assim, a sequência didática pode ser iniciada com uma proposta de análise de imagens (fig. 1, 2, 3, 4 e 5)4. É importante que seja questionada a narrativa principal estabelecida pelas charges selecionadas e, mais fundamental, que elas sejam trabalhadas como documentos, isto é,
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Indico ainda três outras charges disponíveis em uma rápida busca online, mas que não figuram neste artigo por falta de dados suficientes de acervo. A primeira, de Leslie Illingworth, mostra Stálin fincando bandeiras comunistas no mapa do Leste Europeu, em 1947. A segunda, chamada “The Big Three”, é uma referência à Conferência de Yalta, que reuniu os líderes Eisenhower, Stálin e Churchill após o fim da II Guerra Mundial. Na imagem, vemos os três líderes preocupados, visitando um mundo acamado porém sorridente após a II Guerra. A última mostra um Stálin aracnídeo tecendo sua teia ao redor do planeta. Todas as três referendam correntes interpretativas tradicionais sobre as origens da Guerra Fria.
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passíveis de serem interrogadas em suas intencionalidades e temporalidades, e não como meras ilustrações de uma experiência passada. Abaixo, algumas sugestões de perguntas para iniciar a análise. • Qual a mensagem comum que aparece nas imagens? • Quais personagens aparecem em destaque? De que forma? • Como são as atuações dos personagens representados? • Existem papéis que se repetem? Eles representam quais países? • Existem diferenças de poder ilustradas? Como é possível identificá-las? • O que essas charges afirmam? O que silenciam?
O interessante é que a turma possa interagir neste momento, trocar experiências interpretativas a partir da mediação docente. Ao final desse primeiro momento, é importante destacar que as charges, ainda que tragam indivíduos diferentes, representam principalmente as grandes potências da Guerra em papéis ativos e os países do então chamado Terceiro Mundo não aparecem, são desumanizados ou apresentados em posturas amedrontadas, temerosas e coagidas. Além disso, chame a atenção para como, em mais de uma imagem, o mundo inteiro ou parte dele, inanimado ou enfraquecido, está à mercê de líderes voluntariosos ou interesseiros, geralmente metonímias para os projetos políticos em disputa no centro “bipolar”.
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Figura 1. “Colorindo o ovo de Páscoa”. Representação de Joseph Stálin segurando balde de tinta com os dizeres “propaganda vermelha” em inglês. Autor: Edwin Marcus. Provavelmente publicada no The New York Times. Data: 11 abr. 1952. Acervo: Library of Congress/US. Disponível em http://www.loc.gov/pictures/item/2016683649/. Acesso em 19 de maio de 2020.
Figura 2: Lyndon Johnson à esquerda e Brejnev à direta. Este cartum faz referência ao trabalho The plum pudding in danger, de James Gilray. Nele, Gilray representa o primeiro-ministro britânico William Pitt dividindo um pudim com Napoleão Bonaparte. Autor: Leslie Illingworth. Data: 1967. Acervo. National Library of Wales (código ILW4098). Disponível em https://www.library.wales/digital-exhibitions-space/digital-exhibitions/illingworth/illingworth-cartoon-galleries/cold-war. Acesso em 16 de maio de 2020
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Figura 3: Joseph Stálin segura um machado representativo da China de Mao Tse-Tung, enquanto britânicos e estadunidenses se dividem sobre as ações na Guerra das Coreias em razão de suas relações com a China. Nos dizeres, lê-se: Amizade Anglo-Americana / Pedra fundamental da paz. Autor: Leslie Illingworth. Data: 29 jan. 1951. Acervo: The National Library of Wales. Disponível em https://www.library.wales/digital-exhibitions-space/digital-exhibitions/illingworth/illingworth-cartoon-galleries/cold-war. Acesso em 10 de abril de 2020
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Figura 4: Líder soviético Nikita Kruschev, de dentista, extrai os dentes em forma de mísseis do líder cubano Fidel Castro. Nos dizeres atribuídos a Kruschev, lê-se: “Isso dói mais em mim do que em você”. Autor: Edmund Valtman. Data: 1962. Acervo: Library of Congress/US. Disponível em https://www.loc.gov/item/2016687289/. Acesso em 10 de maio de 2020.
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Figura 6: Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos de 1963 a 1969, à esquerda. Mao Tse-Tung, em pé, à direita, acima do líder vietnamita Ho Chi-Min. Título: “A mesa de conferência”. Data: 1968. Autor: Leslie Illingworth. Acervo: The National Library of Wales. Disponível em https://www.library.wales/digital-exhibitions-space/digitalexhibitions/illingworth/illingworth-cartoon-galleries/cold-war Acesso em 10 de maio de 2020.
As charges podem ainda ser retomadas em outros encontros sobre a Guerra Fria que queiram dar destaque à ação dos atores do Terceiro Mundo, já que abrem discussões sobre a Guerra das Coreias, a Crise dos Mísseis em Cuba e o conflito no Vietnã. Após a participação da turma, individualmente ou organizada em equipes de trabalho, as perguntas norteadoras para a próxima parte da aula devem ser: essas imagens ou o que conhecemos sobre o conflito nos
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ajudam a entender como atuou o Terceiro Mundo durante a Guerra Fria? O que sabemos sobre o continente africano nesse período? Pode-se dar destaque aos processos de independências na Ásia e na África, as relações Angola/Cuba, o apoio militar sul-africano em Moçambique etc. e finalizar ressaltando que outra força de atuação foram as conferências internacionais, sendo a mais conhecida delas, a Conferência de Bandung. 2º momento: Aqui, a aula pode ter um breve período expositivo, no qual são elencadas, no quadro ou oralmente, as características das conferências e encontros internacionais do Terceiro Mundo apresentadas mais detalhadamente no capítulo 5 desta publicação. Podem ser ressaltados os aspectos da solidariedade, do alinhamento difícil entre interesses nacionais e colaborativos, das diferenças culturais e políticas, da união contra o colonialismo e o imperialismo no mundo. Elencar alguns desses encontros pode ser interessante também para dar a dimensão de seu volume. Em seguida, em grupos, cada equipe receberá as diferentes documentações: comunicados de delegações (Doc 1), lista de presença (Doc. 2), relatórios governamentais (Doc. 3), discursos de líderes em conferências (Doc. 4), falas de delegações (Doc 5), além de trechos sobre as repercussões dessas conferências para o “mundo negro” na revista Présence Africaine (Doc. 6 e 7). Esta revista, vale destacar, foi um importante periódico empreendido por intelectuais da África Ocidental Francesa, fundado em Paris, em 1947, e conhecido pela defesa da bandeira da Négritude e do pan-africanismo. Na década de 1950, foi palco para discussões políticas e intelectuais sobre o futuro dos países africanos e de seus congêneres asiáticos e latino-americanos.
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Documento 1. Comunicado da delegação egípcia na sessão de abertura da Conferência Afro-asiática de Bandung, 1955 “Senhor presidente, senhores, Nesta conferência, estamos nos reunindo como representantes dos países asiáticos e africanos. Há uma semelhança impressionante entre as condições que prevalecem em nossos países; uma semelhança que opera como uma força unificadora; emergimos de um longo período de influência estrangeira, tanto política quanto econômica. No momento, somos confrontados com problemas como desenvolvimento econômico, reconstrução social e política. Não é de surpreender, portanto, que nos sintamos próximos, o que encontra expressão em nossos conceitos de paz mundial e justiça internacional. [...] A preocupação do Egito com suas reformas sociais e econômicas prementes e mais necessárias não o desviou do desempenho de suas responsabilidades internacionais em uma época tão crítica. O Egito, que há muito tempo é vítima de dominação estrangeira, defende a causa da liberdade e do bem-estar e o princípio da autodeterminação para todas as nações. Isso constitui uma das principais características de nossa política externa. O Egito sempre foi identificado com todos os esforços e iniciativas projetados para garantir aos povos dependentes o pleno gozo dos direitos e benefícios a que têm direito sob a Carta das Nações Unidas. [...] Estou profundamente convencido de que a cooperação entre os países da Ásia-África pode desempenhar um papel dominante na diminuição da atual tensão internacional e a promoção da paz e da prosperidade mundial” Asia-Africa speak from Bandung. Djakarta: The Ministry of Foreign Affairs, Republic of Indonesia, 1955. pp. 67-70. Disponível em http://www.cvce.eu/obj/statement_by_the_egyptian_delegation_at_the_opening_ses sion_bandung_18_april_1955-en-1edb3a8b-ce97-4945-a8f7-5129cda9ced4.html. Acesso em 20 fev de 2020. Tradução minha.
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Documento 2. Participantes de Bandung Afeganistão Birmânia Camboja Ceilão República Popular da China Filipinas Índia Indonésia Japão
Ásia
Laos Nepal Paquistão República Democrática do Vietnã Vietnã do Sul Tailândia Arábia Saudita Iêmen Irã Iraque
Oriente Médio
Jordânia Líbano Síria Turquia Costa do Ouro (atual Gana) Etiópia Egito Líbia Libéria Sudão *Delegação FLN da Argélia
África
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Documento 3. Nota do Ministério de Negócios Estrangeiros francês sobre a I Conferência dos Países Independentes da África, ocorrida em Acra, Gana, em abril de 1958. “A ideia da conferência nasceu durante as festas de independência, em março de 1957. Sua preparação foi trabalhosa. Inicialmente prevista para o outono do mesmo ano, as rivalidades entre Nasser [presidente do Egito], que queria que ela fosse no Cairo, o rei do Marrocos, que sugeriu o Tanger, e o Dr. Nkrumah [de Gana] atrasaram a convocação da conferência, prefigurando uma luta de influências entre os líderes da África do Norte e da África Negra. A União Sul-Africana, que Gana havia convidado, se recusou ao colocar como condição o convite dos países europeus com colônias na África. [...] Era sem dúvida inevitável que a conferência de Acra abordasse os temas do anticolonialismo. Era de se esperar que a crítica seria sobretudo à França. Nossos embaixadores em Acra, Cartum, Monróvia e Adis-Abeba estiveram empenhados na última semana para que as capitais dessem instruções de prudência e moderação às delegações, tendo em conta as crenças que elas manifestaram sobre uma hegemonia norte-africana e o desejo que demonstraram de uma relação amigável com a França [...]. Desde o discurso de abertura, o caráter anti-colonialista foi notório. Todos os oradores, à exceção do delegado da Libéria, mencionaram o problema argelino, reivindicando o direito da Argélia à independência” Ministère des Affaires Étrangeres, Republique Français. Paris, 12 mai 1958, n. 24/AL. Archives Nationales d'Outre-Mer, Aix-en-Provence. Disponível em http://www.cvce.eu/obj/note_du_ministere_francais_des_affaires_etrangeres_sur_la _conference_d_accra_paris_12_mai_1958-fr-fb505c5b-e67f-49d4-9459f58aebc8f378.html. Acesso em 13 de abril de 2020. Tradução minha
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Documento 4. Discurso de Kwane Nkhumah durante a Conferência de criação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, sediada em Adis Abeba, Etiópia. “No primeiro encontro de Chefes de Estado Africanos, no qual tive a honra de ser o anfitrião, havia representantes de apenas oito Estados independentes. Hoje, cinco anos depois, nos reunimos como representantes de nada menos que trinta e dois Estados, os convidados, Sua Majestade Imperial, Haile Selassie I, e o Governo e o povo de Etiópia. [...] O aumento de nosso número neste curto espaço de tempo é um testemunho aberto da indomável e irresistível onda de independência de nossos povos. É também um símbolo da velocidade revolucionária dos eventos mundiais na segunda metade deste século. Na tarefa que está diante de nós de unificar nosso continente, devemos seguir nesse ritmo ou ser deixados para trás. A tarefa não pode estar presa ao andamento de nenhuma outra época além da nossa. [...]. Todo um continente nos deu um mandato para estabelecer as bases de nossa União nesta Conferência. É nossa responsabilidade executar este mandato, criando aqui e agora a fórmula sobre a qual a superestrutura necessária poderá ser erguida. Neste continente, não demorou muito para descobrir que a luta contra o colonialismo não termina com a conquista da independência nacional. Independência é apenas o prelúdio de uma luta nova e mais envolvida no direito de conduzir nossos próprios assuntos econômicos e sociais; construir nossa sociedade de acordo com nossas aspirações, sem impedimentos para esmagar e humilhar controles e interferências neocolonialistas. [...] Ouso dizer igualmente nesta ocasião, excelências, que nos encontramos aqui hoje não como ganenses, guineenses, egípcios, argelinos, marroquinos, malianos, liberianos, congoleses ou nigerianos, mas como africanos. Os africanos se uniram em nossa decisão de permanecer aqui até termos chegado a um acordo sobre os princípios básicos de um novo pacto de unidade entre nós, que garanta para nós e para o futuro um novo arranjo do governo continental. Se conseguirmos estabelecer um novo conjunto de princípios como base de uma nova Carta ou Estatuto para o estabelecimento de uma Unidade Continental da África e para a criação do progresso social e político para o nosso povo, então, a meu ver, esta Conferência deve marcar o fim de nossos vários agrupamentos e blocos regionais. Mas, se falharmos e deixarmos essa grande oportunidade histórica passar, [...] daremos lugar a uma maior dissensão e divisão entre nós, sobre a qual o povo da África nunca nos perdoará.” African Union Comission Archives. Disponível em http://archive.au.int/ . Acesso em 13 ago 2018. Tradução Minha.
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Documento 5. Fala da delegação congolesa durante reunião com chefes de delegações na Conferência Tricontinental de Havana “Nossa delegação está impaciente (...). Repetimos ainda que essa conferência deveria, desde o princípio, tomar ações capazes de responder realmente ao caráter anti-imperialista que queremos dar aos seus resultados” [...]“A comissão do Congo quer saber os critérios que serviram para proceder à designação [dos presidentes das comissões]. A delegação queria igualmente saber, sob quais ângulos os problemas congoleses foram analisados. A delegação do Congo tem o pesar de constatar (...) que o problema congolês não foi considerado e expressa seu vivo protesto pela forma como nossa questão foi tratada aqui. Não podemos (??)... e esperamos admitir que essa Conferência deve examinar os problemas candentes, que no nosso conhecimento são caracterizados pelas lutas e, em nossa concepção, o Congo não pode ser excluído disso”. Versión taquigráfica , resumén y relación acuerdos Asamblea Jefes Delegaciones. Gaveta 1, pasta 2. Arquivo Histórico da OSPAAAL, Havana, Cuba. Tradução minha. Documento 6. Revista Présence Africaine sobre a Conferência de Bandung “Quando dois antigos escravos se encontram, há 9 nove chances em 10 de que eles conversem sobre o tempo em que as correntes da servidão pesavam sobre eles e, feito isso, que prevejam seu futuro comum, seguros sobre a aprendizagem de uma condição submissa comum. Em Bandung, cidade da Indonésia ainda ontem completamente desconhecida, seis países africanos, Estados independentes ou semi-independentes encontraram 23 países da Ásia [...] para discutir juntos seu destino e afirmar sua situação comum. [...] Não é, portanto, um acaso se, em suas intervenções, os delegados asiáticos, assim como os da África denunciem o colonialismo em todas as suas formas. [...] Todos enfatizam a necessidade de se instaurar uma nova ordem, eficaz, internacional, baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Carta das Nações Unidas. La Conférence de Bandoeng, Présence Africaine 1955/3 (N° III), p. 28-44. Acervo Bibliothèque Nationale de France.
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Documento 7. Revista Présence Africaine sobre a Conferência do Cairo Notamos que, de Bandung ao Cairo [II Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, 1957], nós passamos dos princípios a algumas realizações, das ideias à prática política. No Cairo, as resoluções extremamente importantes foram de fato adotadas [...]. Agora, que a diplomacia de canhão está, evidentemente, fadada ao fracasso, e que os povos cresceram, é de se prever que tais manobras cessem e que enfim virá um dia em que o Ocidente compreenderá seu erro. [....] E agora, uma questão se impõe: quais serão as consequências do afro-asiatismo para os povos da América Latina, submetida ao colonialismo econômico dos Estados Unidos? O futuro nos dirá... De Bandoeng au Caire : La Conférence des peuples afro-asiatiques. Présence Africaine 1957/6 (N° XVII), p. 113-114. Acervo Bibliothèque Nationale de France. Tradução minha.
Após o tempo para análise e discussão, os grupos deverão apresentar sua fonte para a turma e as interpretações decorrentes. Ao final, o desafio será a turma responder aos seguintes questionamentos: Quais as diferenças podem ser identificadas entre as conferências? Em quais momentos podemos perceber conflitos com potências imperialistas e colonialistas? De que maneira as fontes históricas ajudam a questionar a narrativa contida nas charges? Por qual razão analisar documentos de agentes africanos auxilia a desmistificar uma História Única sobre a Guerra Fria?
O objetivo é que os grupos possam observar diferenças entre representações estatais e não estatais entre as conferências e tecer comparações entre a narrativa bipolar presente nas charges e o que a documentação traz que desestabiliza essa visão. Além disso, é importante a percepção de
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que, por trás do discurso de solidariedade do Terceiro Mundo, há também muitas desavenças, como podemos verificar na documentação da delegação congolesa em Havana. Os grupos devem ser expostos a uma análise de Terceiro Mundo enquanto conceito político em construção no período estudado, ligado a imagens diversas e não como um grupo homogêneo de países, governos, movimentos políticos e discursos subalternizados e secundários no cenário mundial. A nomeação teve diversos significados ao longo do tempo, desde sua criação nos anos 1950, a depender de quem a mobilizou e o que se procurou projetar a partir de seu uso. Para finalizar, seria interessante apresentar de forma breve as principais correntes historiográficas apresentadas no capítulo 5 deste livro e questionar a turma sobre quais as consequências dessas narrativas. Como proposta de atividade, o professor pode pedir para que os alunos produzam charges que façam uso de personagens históricos do Terceiro Mundo a partir do aprendizado da aula. Resumo de atividades Divisão
Dinâmica
Objetivo
Expor no quadro/projeção
Contexto
Problematização
Sistematização
Atividade
Palestra Chimamanda Adichie Projeção de representações cartográficas
Análise do discurso das charges Explicação das conferências
Apresentação das equipes Mediação docente Charges feitas pelas equipes Exposição dos trabalhos
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Considerações Finais
O objetivo deste trabalho e da proposta didática foi perceber a África e o Terceiro Mundo como construtores ativos das dinâmicas da Guerra Fria. Isso não implica mostrar apenas discordâncias interpretativas sobre o período, mas, antes, sua pluralidade e ambiguidades internas. A ideia foi repensar os termos do mundo em contato, questionando a ideia da contínua primazia do Norte na estruturação e na organização dos sentidos e dos conteúdos da História. Esse trabalho, portanto, foi uma sugestão de inserção da história africana e das políticas do Terceiro Mundo na Guerra Fria de modo mais complexo, que buscasse estimular estudantes a identificarem como as narrativas únicas podem invisibilizar agências históricas. Encarar o desafio do diálogo entre universidade e bancos escolares é urgente e faz parte de um esforço que compartilho com muitos colegas pesquisadores. Adaptar uma pesquisa acadêmica, um conjunto de pesquisas ou uma discussão historiográfica para a sala de aula dos ensinos fundamental e médio nunca é tarefa fácil e, nessa luta, a eficácia da relação entre a academia e o ambiente escolar é sempre posta à prova. André Chervel explica que o conhecimento escolar não pode e não deve ser uma transposição do conhecimento acadêmico e tampouco o ensino na escola é um saber que deve ser simplificado em razão de sua natureza (CHERVEL, 1990, p. 181). Fernando Seffner e Nilton Pereira também dizem algo semelhante: (...) a pesquisa histórica, a história ensinada na academia e o ensino de história na escola básica possuem tempos e modos de produção e transmissão bastante singulares e próprios, portanto, distintos. Entretanto, não decorre dessa afirmação um elogio à cisão entre a pesquisa e o ensino ou entre a escola e a universidade (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p. 114).
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Nesse trânsito entre universidade e escola, a tentativa é e deve ser a de articular o conhecimento da pesquisa a outro nível de ensino, sem a solução fácil de simplificá-lo, transpô-lo ou reduzi-lo em razão do público ao qual se destina. É essencial também reforçar a importância de nos dedicarmos, como professoras e professores, a descolonizar sempre e cada vez mais os conteúdos da sala de aula, o conhecimento que se apresenta como neutro e universal, mas atua para reprodução de projetos imperiais de longa duração (KILOMBA, 2019, p. 53-66). Incluir a História da África nos currículos escolares não como eventos isolados no calendário letivo, mas como parte de um entendimento amplo de humanidade no tempo é uma luta histórica. Os conhecimentos muitas vezes disputam espaços entre si e as narrativas eurocentradas ocuparam e ainda ocupam lugares privilegiados nos conteúdos escolares. Portanto, as discussões sobre colonialidade do poder trazidas por pesquisadores como Aníbal Quijano, por exemplo, (QUIJANO, 2005; 2009) devem estar presentes, de modo transversal, na concepção de nossas aulas. Perceber as permanências da colonialidade após encerrados os capítulos da colonização direta é de fundamental importância para identificar as íntimas relações entre poder, cultura, relações sociais e escrita da História e desenvolver não somente um olhar crítico sobre as experiências humanas no tempo, mas consciência histórica consolidada em nossos estudantes. Diante dos desafios expostos e do objetivo proposto, reitero, por fim, as teses de Marina de Mello e Souza e Anderson Oliva, para quem o ensino de História da África é condição essencial para o ensino de qualidade da história e cultura afro-brasileira e, por sua vez, ponto de partida para a promoção das relações étnico-raciais no Brasil. Mello e Souza alega que o conhecimento sobre as sociedades africanas, sobre seus sistemas de pensamento e processos históricos, garante a desconstrução de temas da
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história brasileira arraigados de preconceitos. Esse prejulgamento, defende a autora, se dá a partir de uma narrativa histórica colonialista a respeito do continente africano e seus agentes. Só a partir do conhecimento mais profundo sobre essas realidades e experiências no tempo e no espaço seria possível analisar “as manifestações afro-brasileiras e o lugar que os africanos e seus descendentes ocuparam no passado e ocupam no presente, no contexto da sociedade como um todo.” (SOUZA, 2012, p. 22). Assim, e à luz da palestra de Chimamanda Adichie, que abre nossa aula, este texto pretende-se uma ponte para diálogos entre a produção historiográfica acadêmica e a sala de aula da educação básica, sem abdicar da importância de narrativas que trabalhem a complexidade das histórias da África, da Ásia, da América Latina e, consequentemente, a cultura histórica escolar em si. Referências BAKKE, Raquel Rua Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afrobrasileiras na aplicação da Lei 10.639. Tese (Doutorado) – Programa de PósGraduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, FFLCH, USP. São Paulo, 2011. BOILLEY, Pierre; THIOUB, Ibrahima. Pour une histoire africaine de la complexité. In Écrire l’histoire de la Afrique autrement. Paris: L’Harmattan, 2004, p.23-45. CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação. nº 2, p. 177-229, 1990. GOMES, Nilma Lino (Org.). Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03. Brasília: MEC/ UNESCO, 2012. KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
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MAZRUI, Ali A. Introdução. IN: MAZRUI, Ali A; WONDJI, Christophe (Orgs.) História Geral da África: África desde 1935, 2ª edição, Brasília: Unesco, 2010. OLIVA, Anderson Ribeiro. Lições sobre a África: diálogos entre as representações dos africanos no imaginário Ocidental e o ensino da história da África no Mundo Atlântico. (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História da UNB. Brasília, 2007. ______. Olhares sobre a África. Abordagens da história contemporânea da África nos livros didáticos brasileiros.. História Revista (UFG. Impresso), v. 14, p. 17-35, 2009. PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de fontes na sala de aula. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 28, p.113-128, dez. 2008. PONTES, Katiúscia Ribeiro. Kemetic, Escolas e Arcádeas: A importância da filosofia africana no combate ao racismo epistêmico e a lei 19.639/03. (Mestrado). Programa de Mestrado Profissional em Filosofia e Ensino - PPFEN do CEFET/RJ. Rio de Janeiro, 2017 Présence Africaine, n. 50, 1964. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In.: SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. ______. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005 REIS. Raissa Brescia dos. África Imaginada: história intelectual, pan-africanismo, nação e unidade africana na Présence Africaine (1947-1966). (Doutorado). Programa de PósGraduação em História Social da Cultura. FAFICH/UFMG, 2018.
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SEFFNER, Fernando. Aprendizagens em História. Teoria & Fazeres: caminhos da educação popular. pp. 34-37 Gravataí, SMEC, 1998 v.1 ______. Aprendizagens signifcativas em História: critérios de construção para atividades em sala de aula. GIACOMONI, Marcello; PEREIRA, Nilton. (Orgs.). Jogos e ensino de história. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018. P. 35-46 2018, SILVA, Ana Célia da . A desconstrução da discriminação no livro didático. Superando o Racismo na Escola, Brasilia - DF, p. 13-30, 1999. ______. Movimento Negro Brasileiro e sua tragetória para a inclusão da diversidade étnicoracial. Revista da FAEEBA, FAEEBA, v. 11, p. 139-151, 2002. SOUZA, Marina de Mello e. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de História da África. Revista História Hoje, v. 1, p. 17-28, 2012.
Parte III Diagnóstico local: Viçosa (MG)
12 O cotidiano e as práticas de educação das relações étnico-raciais em escolas públicas de Ensino Fundamental II em Viçosa, Minas Gerais Lara de Godoi Soares 1 Francismara Delfina Marinho da Costa 2 Maria Raquel Morais Fernandes 3 Maria Tereza Oliveira de Assis 4 Introdução
O diagnóstico que pretendemos apresentar nesse artigo analisa como é o cotidiano das escolas públicas municipais dos anos finais do ensino fundamental, da cidade de Viçosa - Minas Gerais, no que se refere às práticas de educação para as relações étnico-raciais. O processo de implementação da Lei 10.639/2003, estabelece a obrigatoriedade de inserção de História e Cultura Africana e Afro-brasileira na educação básica, posteriormente alterada pela Lei 11645/2008, que acrescenta à Lei 10.639/2003 as questões indígenas. Essas legislações exigem mudanças no currículo, na escola e nas práticas adotadas pelos professores (as), reavaliando o papel da população negra na construção socioeconômica e cultural do Brasil. Essas modificações devem ser acompanhadas de medidas governamentais que sejam capazes de suprir as lacunas deixadas na formação inicial dos professores que graduaram em períodos anteriores às leis ou onde a inserção da História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena 1
Graduanda do curso de História. Universidade Federal de Viçosa.
2
Graduanda do curso de Pedagogia. Universidade Federal de Viçosa.
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Graduanda do curso de História. Universidade Federal de Viçosa.
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Graduanda do curso de Pedagogia. Universidade Federal de Viçosa.
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foi tardia. Logo, é necessário um aporte específico para que esses profissionais se sintam aptos a promoverem trocas de conhecimento cotidianas pautadas em ações antirracistas. Entendemos a necessidade de se trabalhar as questões da população negra e indígena simultaneamente, entretanto, o presente trabalho trata especificamente do recorte da população negra. Reafirmamos, assim, nosso posicionamento de apoio à revisão de todo conteúdo da educação para a inclusão e reparação das populações indígenas a partir de suas reivindicações particulares. A Lei 10.639/2003 resulta da luta dos movimentos sociais negros que buscaram transformar a realidade política e social, por meio da educação. Esse processo exige o resgate da história e cultura da população negra, frente aos cinco séculos de silenciamento e apagamento de suas contribuições para construção da sociedade brasileira e mundial. Para além da responsabilidade de produzir conhecimento efetivamente inclusivo, a lei é um compromisso político de combate ao racismo na tentativa de constituir uma democracia em uma sociedade multicultural e pluriétnica. As reflexões que buscaremos apresentar fazem parte do diagnóstico elaborado no contexto do projeto de extensão intitulado “As artes negras em Minas Gerais: identificação de acervos, divulgação dos artistas e produção de material de apoio ao ensino de História e Cultura Afro-brasileira”, realizado por meio de uma parceria entre a equipe do projeto da Universidade Federal de Viçosa e a Secretaria Municipal de Educação de Viçosa. O projeto ocorreu durante o ano de 2019, no qual foi construído uma ponte de diálogo entre setes escolas públicas, professores(as), diretores(as) e a equipe do projeto. A parceria com a Secretaria de Educação do município foi fundamental para a implementação e realização do projeto, pois foi responsável por estabelecer o primeiro contato da equipe do projeto com as escolas,
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possibilitando, assim, um apoio estrutural para as visitas e a manutenção do diálogo com os professores da rede. A utilização de nomes fictícios e letras alfabéticas resguardará os nomes das escolas. Devemos ressaltar que o intuito não é fazer juízo de valor sobre as realidades escolares, mas perceber os avanços e os desafios para a implementação da lei 10.639/2003 nas escolas municipais da rede pública de Viçosa. Pensando nos diversos aspectos que englobam a vivência escolar, a análise percorreu três pontos específicos dessa realidade, sendo eles: as práticas pedagógicas, percebidas por meio de diálogo e entrevistas realizadas com os professores das áreas de ciências humanas; os materiais didáticos, neste caso, os livros didáticos de história utilizados nas escolas; e o cotidiano escolar, pensando a estrutura das escolas, as bibliotecas e o acervo literários disponíveis para uso da comunidade escolar, sobretudo dos(as) alunos(as). Limitações das práticas pedagógicas e a Lei 10.639/2003
A implementação da Lei 10.639/03, segundo Nilma Lino Gomes, necessita de práticas concretas para ser efetiva, pois a implantação é apenas um momento inaugural dessa política pública. A fim de que esse movimento seja realizado de forma completa é necessária: uma educação voltada para produção do conhecimento, para formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos para (e na) diversidade étnico-racial, significa a compreensão e a ampliação do direito à diferença como um dos pilares dos direitos sociais. Implica também a formação de subjetividades, de sujeitos inconformistas diante das práticas racistas e com o conhecimento teórico-conceitual mais aprofundado sobre a África e as questões afro-brasileiras. (GOMES, 2009, p. 22)
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Visto que a implantação e a implementação dessas modificações são feitas de modo interdependente, é necessário que sejam aplicadas de forma conjunta para a promoção de uma educação antirracista. A partir da adoção dessa lei e dos desdobramentos das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, são propostos conteúdos e discussões que devem ser trabalhados nas escolas brasileiras (MÜLLER, 2013, p.38). A pesquisa realizada pelo projeto de extensão “Artes Negras em Minas” teve como objetivo fazer um levantamento sobre a aplicabilidade da lei e das diretrizes citadas acima, além da mapear as dificuldade de sua implementação nas Escolas Municipais do Ensino Fundamental II do município de Viçosa. Dessa forma, participaram do preenchimento dos questionários vinte e sete professores (as) da área de Ciências Humanas, distribuídos entre as sete escolas parceiras, sendo o preenchimento do questionário realizado pelos (as) próprios (as) docentes, distribuídos pelas participantes do projeto em suas visitas às instituições. Pudemos constatar, a partir dos resultados do formulário, diversos fatores que impossibilitam a aplicabilidade integral da lei referente ao Ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira. A primeira informação analisada refere-se ao ano de formação dos (as) professores (as), tendo como resultado dezessete profissionais analisados (as), formados (as) entre os anos de 1980 e 2000, na qual a Lei 10.639/03 ainda não havia sido instaurada. Logo, esses (as) orientadores (as), provavelmente, não possuíam contato com a História da África e Afro-brasileira em suas formações docentes, e se formaram com uma defasagem na temática. Logo após, percebemos que a maioria deles (as) possuíam uma formação além da graduação, demonstrando, assim, interesse em outras formas de especialização, o que pode ser interessante para
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a formação complementar, caso seja realizado atendendo às devidas remunerações e incentivos previstos no Plano de Carreira desses (as) profissionais. Como apontado nos gráficos 1 e 2. Gráfico 1: Ano de formação dos professores analisados pela pesquisa.
Fonte: elaborado pelas autoras. Gráfico 2: Formação acadêmica dos professores.
Fonte: elaborado pelas autoras.
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Foi pontuado, também, pelos (as) profissionais, ao responderem o questionário, a importância dos cursos oferecidos sobre a temática e como eles auxiliam na preparação das aulas, com relatos como: “Este curso aconteceu em 2019. O curso foi ótimo para aprimorar meus conhecimentos sobre o assunto, espero poder fazer outros cursos. O curso foi realizado na UFV cujo tema: Democracia e Escola de Filosofia no Antigo Egito até as Artes Contemporâneas. Serão 5 encontros sobre esse tema.”. Assim como apontam falhas: “Foi muito bom, não me lembro do ano e me esqueci o nome da professora, porém ficamos decepcionadas porque não aconteceu o fechamento do curso.” Na tentativa de sanar a ausência e o silenciamento nas formações docentes, anterior e posteriores à lei, o Conselho Nacional de Educação propôs medidas a serem tomadas, como o parecer nº 03/04 que visa a: instalação, nos diferentes sistemas de ensino, de grupo de trabalho para discutir e coordenar planejamento e execução da formação de professores para atender ao disposto neste parecer quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais e ao determinado nos Art. 26 e 26A da Lei nº. 9.394/1996, com o apoio do Sistema Nacional de Formação Continuada e Certificação de Professores do MEC. (Conselho Nacional de Educação apud MÜLLER, 2013, p.47)
Porém, verificamos que onze dos vinte e sete professores (as) analisados (as) não havia realizado nenhum tipo de formação ou preparação sobre o conteúdo, exposto no gráfico 3. Demonstrando assim, uma ineficiência dos entes federados designados para tais funções, que devem prezar pelas melhorias salariais e trabalhistas, além de organizar o tempo de seus educadores.5
5
FONTENELE, Zilfran Varela; CAVALCANTE, Maria da Paz. Práticas docentes no ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Indígena. Educação e Pesquisa, v. 46, 2020.p.13
Lara G. Soares; Francismara D. M. da Costa; Maria R. M. Fernandes; Maria T. O. de Assis | 279 Gráfico 3: Professores que se dedicaram à algum curso de História e Cultura Africana.
Fonte: elaborado pelas autoras.
A maioria dos educadores (as) alegaram abordar os conteúdos de História e Cultura Africana e Afro-brasileira em sala, porém, alguns justificaram essa ausência com a insuficiência da carga horária diante da quantidade de conteúdos, e por não terem confiança ou conhecimento necessário para abordar o assunto, denotado no gráfico 4. Entretanto, devemos ressaltar que a introdução da Lei 10.639/03 não deve ocorrer apenas com um acréscimo ou a criação de novas matérias, mas sim com a revisão daquelas já existentes, rompendo com o eurocentrismo epistemológico, com o silenciamento e apagamento dos conteúdos referentes à História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Citamos a utilização de uma diversidade de recursos didáticos, entre eles: filmes, documentários, manifestações artísticas populares, músicas, literatura e documentos escritos. Sua utilização é primordial para que o conhecimento científico seja articulado com a realidade social, cultural, histórica e política dos demais sujeitos sociais - os alunos - visando a
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promoção de uma formação escolar completa e que respeite as contribuições e os conhecimentos prévios de todos os agentes. Gráfico 4: Professores que abordam a temática nas salas de aula.
Fonte: elaborado pelas autoras.
A maioria dos docentes declararam trabalhar esse conteúdo ao longo do ano letivo, mas houve afirmações sobre abordagens apenas em momentos específicos do ano, como no dia 20 de novembro, considerado o Dia da Consciência Negra, ou em 13 de maio, data em que se “comemora” a Abolição da Escravidão, comprovado com o gráfico 5. Além da temática estar presente em todas as discussões ao longo da formação do estudante, não apenas de forma pontual,6 essas datas simbólicas devem promover debates, demonstrando as reais mudanças pós comemoração, a fim de, derrubar o mito da democracia racial.
6
FONTENELE, Zilfran Varela; CAVALCANTE, Maria da Paz. Práticas docentes no ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Indígena. Educação e Pesquisa, v. 46, 2020. p.7
Lara G. Soares; Francismara D. M. da Costa; Maria R. M. Fernandes; Maria T. O. de Assis | 281 Gráfico 5: Período de frequência da abordagem.
Fonte: elaborado pelas autoras.
Constatamos uma duplicidade de opiniões acerca do livro didático, como indica o gráfico 6, tendo um número expressivo de respostas positivas e negativas sobre a abordagem da História e Cultura Africana e Afrobrasileira. O tema será abordado de forma mais detalhada no próximo tópico deste capítulo, porém, nota-se que essa dualidade dos (as) professores (as) pode ser decorrente da inserção do tema sem haver, paralelamente, uma transformação do paradigma estrutural do livro, principalmente o de história, escrito por Alfredo Boulos Júnior.
282 | Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares Gráfico 6: Abordagem da temática pelo livro didático.
Fonte: elaborado pelas autoras.
Destarte, levantamos dados sobre os principais artistas negros lembrados pelos(as) docentes, sendo os mais destacados ligados ao ramo das telenovelas, como o casal Lázaro Ramos e Thaís Araújo, seguidos por Zezé Mota. Foram lembrados, também, destaques referentes ao campo musical, como Milton Nascimento, Thiaguinho, Djavan, Nego do Borel, Carlinhos Brown, Noel Rosa, Seu Jorge, Alexandre Pires e Pelé, na esfera dos esportes. O intelectual, ativista e ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, foi mencionado poucas vezes. Ademais, citaram alguns (mas) autores (as) como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Guimarães Rosa, porém ainda é demonstrada uma falta de conhecimento sobre representatividade negra nas artes plásticas, na ciência, na política ou na autoria de livros que sejam rapidamente lembrados por esses profissionais, com a tentativa de ser sanada ou apaziguada com os resultados da pesquisa, como mencionado por uma professora: “Acho que o que nos é oferecido como formação é muito pouco,
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sobretudo na área de literatura.Temos um material riquíssimo, pouco explorado.” Os demais professores destacaram como principais desafios, ao trabalharem com as relações étnico-raciais, a falta de bibliografia adequada na biblioteca das escolas e de recursos didáticos para uso em sala, além de, demonstrarem precisar de uma alta demanda de tempo para preparação de aulas nessa temática. Logo, é de grande importância a confecção do material paradidático pela equipe do projeto de extensão, visando uma maior agilidade no planejamento e realização das aulas, utilizando interdisciplinaridades com as artes plásticas e a literatura, para abordar esse conteúdo. Notamos também, durante as visitas, um grande número de profissionais que não residia em Viçosa, mas trabalhava na cidade, consumindo assim, um tempo considerável com o deslocamento intermunicipal, causando um desgaste físico e emocional. Ademais, a dupla jornada de trabalho, devido à baixa remuneração da profissão, é mais um agravante para a desmotivação dos professores, causando assim, uma defasagem educacional. Devemos destacar a atuação de uma das sete escolas parceiras que desenvolve, no decorrer do ano letivo, um projeto que objetiva valorizar a História e Cultura Afro-brasileira, com sua culminância na Semana da Consciência Negra. Em novembro, os discentes, educadores e a comunidade escolar se empenham para a apresentação e exposição de comidas típicas, danças e roupas representativas. Os dados expostos e discutidos acima possibilitam uma maior aproximação com a realidade da aplicabilidade da Lei 10.639/03 nas escolas Municipais do Ensino Fundamental em Viçosa, por parte da docência.
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Livros didáticos de História: avanços e desafios
Pensar a implementação da lei 10.639/03 exige analisar os materiais didáticos que serão apoios no trabalho dos (as) professores. Sabemos que os (as) profissionais utilizam diversos outros materiais de apoio no processo de elaboração das aulas, contudo essas iniciativas são em âmbito individual e diferentes de acordo com o objetivo de cada um. Elegemos o livro didático para construir uma análise padrão, pensando o contexto geral das escolas públicas de Viçosa. Optamos pelo livro didático da disciplina de História como objeto de análise por duas razões: em primeiro lugar, por uma questão estrutural, uma vez que o projeto de pesquisa foi realizado pelo curso de História em parceria com a Pedagogia; e em segundo, por entendermos que apesar da lei propor uma mudança estrutural nas metodologias de ensino, aprendizagem e produção do conhecimento, a disciplina de História é o principal componente curricular a ser transformado pela implementação da lei. A coleção de livros didáticos de História, adotada pelas escolas municipais de Viçosa no ano de análise, é de autoria de Alfredo Boulos Júnior, publicada na cidade de São Paulo pela editora FTD no ano de 2015. A secretaria municipal de educação de Viçosa escolhe o livro didático em consenso com os coordenadores pedagógicos e professores das escolas. Esse procedimento, de implementar o mesmo livro em todas as escolas da rede pública municipal de ensino, está ligada a uma necessidade estrutural. Os livros são compartilhados entre as escolas quando há troca de alunos entre elas, e/ou quando falta livro em uma e há excedentes em outra. Analisamos os livros referentes aos quatro níveis de ensino dos anos finais do fundamental, 6º ao 9º ano. Nosso objetivo foi compreender como a História e Cultura Africana e Afro-brasileira estão presentes nos livros didáticos.
Lara G. Soares; Francismara D. M. da Costa; Maria R. M. Fernandes; Maria T. O. de Assis | 285
Buscaremos dialogar com a última versão da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, lançada em 2018.7 Contudo, a coleção de livros didáticos analisada foi lançada antes da BNCC. Assim, a análise que faremos não tem como foco avaliar o livro dentro dos parâmetros propostos, mas sim, dialogar com as perspectivas para o ensino de história nos anos finais do ensino fundamental e identificar como ocorre a presença da história e cultura africana e afro-brasileira nestes livros didáticos. A proposta da coleção supõe um enfoque para cada ano de ensino. Não será possível, desse modo, perceber todos os conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira em um único nível. Contudo, é importante considerar que esse processo de inserção de uma temática na estrutura escolar deve ser feito de maneira transversal, revisando todo o conteúdo e não apenas inserindo um capítulo que aborda a temática (MATTOS, 2009). Tal processo geraria uma transformação em todo o conteúdo programado e essa mudança poderia ser observada no livro de cada ano, independentemente de quais assuntos/conteúdos esse alude. Infelizmente, a superação do atual paradigma ainda é um desafio para o campo da História como um todo, por consequência, ainda é um limite para os livros didáticos. Para os anos finais do ensino fundamental, a BNCC propõe um contato com o saber histórico, as dinâmicas de tempo, presente e passado, o trabalho com as fontes e a utilização de métodos para reconhecer as diversas narrativas sobre um determinado fenômeno.8 Para o 6º ano, a BNCC propõe esse diálogo sobre o saber histórico, as sociedades antigas, e a chamada antiguidade clássica.9 O livro analisado ultrapassa essa proposta, trazendo toda essa reflexão e ainda um diálogo com o Oriente. Detém um 7
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação, Brasília – DF. 2018.
8
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação, Brasília – DF. 2018. pp. 416-417.
9
Ibidem. p.417.
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capítulo específico para História da África intitulado “O Egito antigo e o Reino de Kush” (BOULOS, 2015, p. 129), abordando o Egito antigo, a sociedade Núbia e o reino de Kush. Buscava também discutir os aspectos econômico, social, cultural, religioso e político dessas sociedades. O continente africano era abordado em outros capítulos que dizia respeito à formação da humanidade. O livro utilizava comparações e relações entre as diferentes sociedades africanas, contrapondo o estereótipo de um continente homogêneo, trazendo imagens, mapas e exercícios para trabalhar esse conhecimento. As imagens e mapas eram legendados e descritos, entretanto não eram problematizados. Dessa forma, cabia ao professor realizar essa discussão. Mesmo com todos os avanços percebidos no livro de Boulos e, como dito anteriormente, sobre o paradigma historiográfico, entendemos que este ainda é regido pelo saber eurocêntrico, e percebemos que na organização das unidades as sociedades não europeias estão sujeitas a um conjunto específico de narrativas, como se estas estivessem exclusivamente no passado e não estimulam questões no presente. Em contraponto, a história da antiguidade clássica é abordada através de diálogo com questões da atualidade, como a busca de direitos e a construção da democracia. Para o 7º ano, a BNCC propõe um aprofundamento nas relações entre Europa, América e África, entre os séculos XV e XVIII.10 No livro didático também havia um capítulo específico que apresentava o debate sobre a cultura e história africana. Não abordava a cultura e história afrobrasileira, porém fazia alusões às relações linguísticas com o Brasil, trazendo outros aspectos da cultura africana e fazendo relações que condizem com a realidade dos alunos. Utilizava também diversos recursos como
10
Ibidem, p. 420.
Lara G. Soares; Francismara D. M. da Costa; Maria R. M. Fernandes; Maria T. O. de Assis | 287
mapas, imagens, documentos, atividades e questionários para construção da narrativa (BOULOS, 2015). As imagens escolhidas para a construção do texto proporcionavam a abertura de um espaço para presença africana no mundo, sendo fonte riquíssima para a discussão em sala de aula. Por exemplo, a sessão de imagens de artistas negros brasileiros, que podia ser utilizada para pensar a influência africana na construção artística do Brasil e do mundo.11 Porém, novamente ficava a cargo do professor problematizar as imagens, que eram colocadas de forma ilustrativa. O livro buscava fazer relações com outras culturas, sem “exotificar”12 as culturas africanas. As relações criadas não estavam vinculadas à escravidão, abrangendo a cultura, língua, religião e diversidade. Assim, eram apresentadas perspectivas positivas das contribuições de civilizações negras, apoiadas na língua, arte e cultura. O capítulo era extremamente rico, abordando a África enquanto continente e aprofundando em diversos aspectos. Possibilita também a percepção do aluno sobre a pesquisa histórica, convidando-o a entender as fontes e mostrando os autores e historiadores presentes na discussão. Destacava a presença de figuras negras que são importantes ícones da cultura e da ciência. Apesar da riqueza do capítulo presente no livro destinado ao 7º ano, percebemos que o único momento em que a temática africana e afro-brasileira foi abordada ocorreu na unidade intitulada “Diversidade e discriminação religiosa” (BOULOS, 2015, p. 10), ao passo que nos capítulos das unidades “Arte e religião”, “Formação do estado moderno”, “Nós e os outros”, o continente africano e a figura das pessoas negras foram raramente citadas ou incluídas, evidenciando que, embora o livro tenha
11
Ibidem. pp. 64-89.
12
Tornar exótico, esquisito, exêntrico, estravagante. Distanciar da realidade do interlocutor.
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avançado em incluir a História e Cultura Africana e Afro-brasileira, este ainda permanece dentro do paradigma eurocêntrico. Para o 8º ano a proposta da BNCC era centrada no século XIX e nos processos de independência na América, principalmente do Brasil. Destacavam-se também os fenômenos nacionalistas e imperialistas por todo o ocidente.13 No livro do 8º ano, existia um capítulo exclusivo para a discussão sobre a história e cultura afro-brasileira, nomeado “Africanos no Brasil: Dominação e Resistência” (BOULOS, 2015). Neste tópico, o livro trata das relações entre a África e o Brasil apenas no que tange ao sistema escravista. Os aspectos abordados, mesmo que diversos, eram realizados em comparação ou associação a esse sistema. As imagens presentes no livro desempenhavam apenas uma função ilustrativa, somente os mapas eram colocados como forma de contextualização do texto escrito, e a cultura afro-brasileira em todos os seus aspectos era estereotipada e relegada a um dualismo de exploração e resistências. É interessante pensar novamente a organização das unidades e os títulos que esses recebiam. A primeira Unidade, onde estava o capítulo citado anteriormente, era intitulada “Dominação e Resistência”, retratando os processos Imperialistas na América Portuguesa, sobretudo no Brasil. A segunda, “A luta pela cidadania”, abordava os fenômenos vivenciados na Europa, Revoluções Inglesas, Iluminismo, Revolução Francesa e Era Napoleônica. A terceira, “Terra e liberdade”, discutia os processos de independência no Haiti, na América espanhola, e mais profundamente no Brasil, passando desde a independência ao processo de proclamação da república. Vale ressaltar que nessa unidade também encontramos referências à cultura afro-brasileira, à população negra, sobretudo nos processos de abolição. Percebemos que o foco do livro estava nos processos de
13
BRASIL. Op. Cit. p.420.
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independência e proclamação da república no Brasil, dialogando com outras partes do globo, assim como aponta a BNCC. Entretanto, os nomes das unidades pareciam construir uma ideia de Europa como criadora de todos os conhecimentos e conceitos, além de relegar a presença da população negra apenas no contexto da escravização. Por fim, a BNCC indicava para o 9º ano a discussão acerca dos séculos XX e XXI, sobretudo no que tange ao Brasil republicano e aos desdobramentos da constituição de 1988. Também indicava diversas discussões no âmbito global, debatendo os grandes conflitos mundiais, a importância da discussão dos direitos humanos e diversidades identitárias.14 O livro didático do 9º ano retomava a história da África iniciada no 6º ano, e por meio do capítulo intitulado “Independências: África e Ásia” (BOULOS, 2015, p. 173) dava sequência ao debate aprofundado sobre os diversos fenômenos e contextos africanos, com o intuito de entender o continente de forma pluriversal. Esse espaço era
destinado à história política, concen-
trando-se na independência dos países africanos, fazendo relação com o ocidente. O livro também utilizava imagens, mapas e documentos para endossar a narrativa, sendo alguns destes problematizados e outros empregados de forma ilustrativa. Após a análise dos livros didáticos utilizados pelas escolas municipais de Viçosa, para os anos finais do ensino fundamental, ficou evidente o desafio das e dos professores em preparar uma aula que abordasse, com dinamismo, todas as temáticas propostas pela BNCC e pelo livro didático, sem que este recaísse em estereótipos e reforçasse os mitos acerca da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, devido ao fato de que, mesmo que o livro tivesse um notório avanço na inserção do debate acerca dessa temática, ele ainda precisava transformar o seu paradigma geral, assim
14
BRASIL. Op. Cit. p. 420.
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como toda a historiografia. Nos livros do 6º, 7º e 9º anos, acompanhamos um avanço significativo na inserção do conteúdo, mas a Europa ainda ocupava lugar de destaque, cumprindo o papel de “Eu” ou “Nós” na própria “história nacional” brasileira onde, como citado anteriormente na Unidade 4 - “Nós e os Outros”- do livro do 7º ano, “Nós” eram os Imperialistas e os “outros” eras a populações americanas “conquistadas”. Importante também destacar as temáticas dos livros didáticos do 8º ano, que esvaziavam a história e cultura afro-brasileira ao insistirem na dicotomia escravidão versus resistência. Biblioteca escolar: acervos de autores (as) negros(as)
Colocamos em pauta o importante papel que o espaço destinado à biblioteca desempenha nas escolas. Entre outras razões, destaca-se pelo fato de ser um local importante para formação integral dos/as alunos/alunas por contribuir para o enriquecimento cultural, de toda comunidade escolar e local. A inexistência de bibliotecas nas escolas e na comunidade ou sua ineficiência fere os direitos do cidadão de se tornar leitor, ter acesso às informações e desenvolver competências para a aprendizagem ao longo da vida (REAME, 2009, p.20). Nesse sentido, para aprimorar e cumprir sua função, a biblioteca requer espaço físico adequado, atrativo, formativo e diversificado em acervos, isto é, obras literárias narradas por diferentes autores/as, classes sociais, raça, gênero e etnia variados. Isto posto, adotamos a perspectiva de que a biblioteca é positiva para desconstruir preconceitos e romper com o silenciamento dos autores/as apagados pela cultura eurocêntrica. Na tentativa de refletir sobre os problemas que permeiam este espaço, e impede a construção de uma sociedade multicultural, são necessárias indagações como: As escolas visitadas têm esse espaço cultural? Quais ações são realizadas para combater os preconceitos, dentre eles,
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o racial? O ambiente é favorável para as leituras e realização de trabalhos com os estudantes? Os acervos disponíveis contribuem para formação de uma sociedade antirracista? A importância dessa investigação se concentra em desmistificar a visão de que a população negra brasileira não contribui para a construção de conhecimentos e perspectivas culturais, políticas e econômicas, dessa forma, pretendemos estimular a inclusão da literatura negra na prática docente, tendo em vista que ela pode favorecer a quebra dos silenciamentos historicamente impostos, além de ser um instrumento para o fortalecimento da autoestima da pessoa negra presente na escola e na sociedade. Um parecer sobre as bibliotecas
Em 2010, foi sancionada a Lei 12.244, que institui a obrigatoriedade que todas as escolas públicas e privadas tivessem uma biblioteca. No parágrafo único, a lei traz as seguintes linhas: Será obrigatório um acervo de livros na biblioteca de, no mínimo, um título para cada aluno matriculado, cabendo ao respectivo sistema de ensino determinar a ampliação deste acervo conforme sua realidade, bem como divulgar orientações de guarda, preservação, organização e funcionamento das bibliotecas escolares.15
Dito isso, espera-se que todas as escolas possuam o espaço para a biblioteca. A coleta dos dados deste projeto foi realizada no ano de 2019, com intuito de mapear obras literárias de autores/as negros/as presentes nas bibliotecas e o acesso destas pelos professores/as e alunos/as. Buscamos
15
BRASIL. Lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010. Dispõe sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do País. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília - DF, p.3, 25 mai. 2010.
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analisar o espaço físico, a organização e a função que ela desempenha na escola, tendo em vista que o espaço adequado para biblioteca incentiva o uso e a utilização dos serviços oferecidos por ela. Para preservar a identidade das instituições, será utilizado as letras - A, B, C, D, E, F e G - em referência às sete escolas participantes. É válido mencionar que no documento inicial constavam oito escolas municipais aptas a serem analisadas, porém, houve a desistência de uma delas na contribuição com o projeto por motivos não revelados. Segue abaixo a tabela com o nome fictício das escolas, a localização e a condição do espaço das bibliotecas. Tabela 01 – Relação das escolas, localização e biblioteca ESCOLAS
LOCALIZAÇÃO
BIBLIOTECAS
A
Zona Urbana - Região Periférica
Espaço improvisado
B
Zona Urbana - Região Central
Espaço próprio
C
Zona Urbana - Região Central
Espaço próprio
D
Zona Urbana - Região Periférica
Espaço improvisado
E
Zona Urbana - Região Periférica
Espaço próprio
F
Zona Urbana - Região Periférica
Espaço próprio
G
Zona Urbana - Região Periférica
Espaço improvisado
Fonte: Elaborado pelas autoras
As condições estruturais das bibliotecas
Para essa análise, levamos em consideração o espaço físico, a iluminação, os mobiliários e a organização do acervo como aspectos necessários para a garantia de um bom atendimento. Pimenta et al. (2009) destaca:
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O design da biblioteca escolar é fundamental no modo como a biblioteca serve bem a escola. O aspecto estético contribui para a sensação de bom acolhimento, bem como para o desejo da comunidade escolar de passar tempo na biblioteca (PIMENTA, 2009, p. 9).
Na primeira visita - escola A, fomos recebidos pela coordenadora da instituição que nos encaminhou para a responsável da biblioteca, surpreendentemente, a colaboradora atuava na escola na função de cantineira, sendo a mesma responsável pela chave do local. Observamos que a biblioteca não dispunha de horários para atendimentos da comunidade escolar, tendo em vista que não havia bibliotecário (a) em dedicação exclusiva. Conforme Barros (2005, p.70 apud Silva, p.4, 2014), ainda “não há um reconhecimento visível e palpável desse profissional, uma vez que seu espaço muitas vezes é ocupado por outros profissionais e nem sempre são capacitados ou formados em Biblioteconomia”. Já Costa (2013, 30 apud Fragoso, 2002), aponta que uma biblioteca escolar com boa estrutura física e excelente acervo, apesar de parecer ótimo, não cumpre com seus objetivos se não houver bibliotecário no comando. Desta forma, Mendes e Sousa (2016) dizem que apesar da Lei 12.244/2010 determinar a contratação de um profissional bibliotecário nas escolas brasileiras, a ausência de concursos para o cumprimento desta lei inviabiliza a utilização do acervo e a consequente formação de leitores nestas instituições. A partir desse dado, percebemos que a biblioteca não é vista como aliada no processo ensino-aprendizagem dos estudantes. No que tange ao espaço, este era improvisado e desorganizado, com janelas quebradas e sacos plásticos servindo de cortinas. O excesso de poeira e pouca ventilação era outra situação crítica principalmente para os alunos e professores que sofriam de doenças alérgicas, o que impossibilitava a permanência nesse local. Ademais, as mesas e as poucas cadeiras presentes possuíam tamanhos inadequados para os alunos de diferentes
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faixas etárias atendidos na instituição, o que contribuía para a não efetivação da função que a biblioteca deveria ter. Sobre as condições físicas das bibliotecas, Silva (2015, p.23) afirma que é importante que sejam espaços confortáveis, com ventilação e iluminação adequadas, com decoração e mobiliário apropriados de modo a tornar o espaço convidativo e prazeroso. De igual modo, as escolas D e G não possuíam um espaço próprio para a biblioteca, e na tentativa de minimizar essa ausência, uma sala foi dividida entre as funções da biblioteca, aulas de reforço, local para reuniões e, ainda, como espaço para castigo, para os alunos que não cumpriam com as atividades escolares. Dessa forma, percebemos que os docentes não incentivavam a permanência dos estudantes na biblioteca para leituras prazerosas, mas a utilizavam para punição, fazendo com que o alunado tivessem aversão a permanecer nesse local. Em contrapartida, as escolas B, C, E e F possuíam um espaço exclusivo para biblioteca, com mobiliário e iluminação adequados, além de área física suficiente para atender o número de discentes, de faixas etárias diferentes, matriculados na instituição. Contudo, na escola C, foi observado e confirmado pela colaboradora responsável pelo local, que o recinto, na maior parte do tempo, era utilizado como sala de vídeo e não como um ambiente destinado às atividades de leitura. A justificativa foi que os estudantes não tinham perfis de leitores, pois não se interessavam pela leitura e muito menos em permanecer no espaço para essa atividade. O acervo das bibliotecas
Fez parte dessa etapa verificar a presença de obras literárias dos/as autores(as) negros/as nas bibliotecas disponíveis para prática docente. O objetivo foi promover por meio dessa análise a valorização da História Afro Brasileira e Africana, tal como a divulgação desses autores negros. Ainda
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utilizando a nomenclatura para designar as escolas, na escola B, os livros estavam dispostos nas prateleiras e organizados de forma dinâmica, separados por seções de português, matemática, geografia, ciências, história, inglês e literatura. Nesta biblioteca foram encontrados oito livros relacionados à cultura Africana e Afro Brasileira, entretanto, cinco foram escritos por autores(as) brancos, sendo eles: Marie Sellier, Ana Maria Machado, Zilá Bernd, Mario Henrique, Gabriela de Amorim, Amélia Ferreira, e André Diniz. Além disso, foram registradas três obras de autores (as) negros(as), sendo o “Malungos na escola: questões sobre culturas afrodescendentes e educação”, um livro didático. Tabela 02- Escola A TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
O Menino Marrom
Ziraldo*16
Memorial de Aires
Machado de Assis
Esaú e Jacó
Machado de Assis
Helena
Machado de Assis
Crônicas Escolhidas
Machado de Assis
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis
A palavra é Amor
Machado de Assis
A cor da Ternura
Geni Guimarães
Do Outro Mundo
Ana Maria Machado*
Amor não tem Cor
Giselda Laporta* Fonte: Elaborado pelas autoras *Autores/as não negros/as
16
* Foi utilizado este sinal para indicar que são autores/as não negros/as.
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Tabela 03- Escola B TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
A áfrica, meu pequeno chaka
Marie Sellier*
Histórias Africanas
Ana Maria Machado*
Racismo e Anti-racismo
Zilá Bernd*
Quilombolas
Mario Henrique, Gabriela de Amorim, Amélia Ferreira
Culturas Africanas e Afro-brasileiras em sala de aula
Renata Felinto
Quilombo Orum Aiê
André Diniz*
Malungos na escola: questões sobre culturas afrodes-
Edimilson de Almeida Pereira
cendentes e educação Quatro dias de rebelião
Joel Rufino dos Santos Fonte: Elaborado pelas autoras * Autores/as não negros/as
Durante a análise da escola C, a biblioteca apresentou-se organizada, com os livros empilhados nos armários e prateleiras; após o mapeamento dos escritores só foram encontradas duas obras de autores negros. Vale ressaltar que a colaboradora escolar, responsável por essa biblioteca, justificou esta ausência dizendo que “os negros escreveram depois”, afirmando que tal fato ocorreu devido ao longo período de escravidão, o que impossibilitou os negros de escreverem, já que estes eram privados de liberdade e educação, concluiu a colaboradora. Essa visão errônea justifica o quanto é urgente a promoção de atividades antirracistas no espaço escolar. Segundo Nilma Lino Gomes (2012, p.107), trata-se de uma (re)construção histórica alternativa e emancipatória, que procura construir uma outra história, oposta à perspectiva eurocêntrica e dominante.
Lara G. Soares; Francismara D. M. da Costa; Maria R. M. Fernandes; Maria T. O. de Assis | 297 Tabela 4 - Escola C TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
De Olho em Zumbi dos Palmares
Flávio dos Santos Gomes
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto Fonte: Elaborado pelas autoras
Ademais, nas instituições D e E, foi observado que os acervos encontravam-se ordenados e organizados nas estantes, e apesar do reduzido número de livros, foram identificadas doze obras de autores negros na biblioteca da escola D e três na escola E. No educandário F, foi encontrado um grande número de acervos estruturados e organizados em prateleiras, ordenados do 1º ao 9º ano, de acordo com as etapas do ensino fundamental. Contudo, ao averiguar os exemplares literários, foram identificadas apenas três obras de escritores (as) negros(as). Tabela 5 - Escola D TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
Helena
Machado de Assis
Agbalá: Um lugar-continente
Marilda Castanha*
Ressurreição
Machado de Assis
Histórias que a menina- serpente contou
Ilma Maria e Fábio Cardoso
Mina-África
Lenice Gomes, Arlene Holando, Clayson Gomes
A nova Califórnia e outros contos
Lima Barreto
Nyargaro China
Rogério Branco*
Aqualtune e as histórias da África
Ana Cristina Massa*
Contos - Fantásticos
Machado de Assis
O Alienista
Machado de Assis
298 | Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares Ulomma: A casa da beleza e outros contos
Denise Nascimento
Omo-oba- Histórias de princess
Kiusam de Oliveira Fonte: Elaborado pelas autoras *Autores/as negros/as Tabela 6 - Escola E
TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
Contos de hoje e de ontem
Lima Barreto
Verso e Reverso do favor no romance
Machado de Assis
Os Escravos
Castros Alves Fonte: Elaborado pelas autoras Tabela 7 - Escola F TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
Quincas Barba
Machado de Assis
Várias Histórias
Machado de Assis
Texturaafro
Adão Ventura Fonte: Elaborado pelas autoras
Enfim, na instituição G, foi observado escassez de obras literárias, sendo encontradas apenas três referências de autoria negra. Cabe salientar ainda, que os livros analisados eram destinados para o público infantil, com foco na alfabetização, ou seja, esses livros não atendiam aos estudantes do Ensino Fundamental II. A partir das observações realizadas, notamos que a maior parte das bibliotecas estava fechada, e isto evidenciou a falta de empenho dos gestores e docentes no que tange à frequência dos alunos nesse espaço de trocas culturais e de conhecimento.
Lara G. Soares; Francismara D. M. da Costa; Maria R. M. Fernandes; Maria T. O. de Assis | 299 Tabela 8 - Escola G TÍTULO DAS OBRAS
AUTORES(AS)
Literatura em minha casa
Machado de Assis
Nossos Poetas Clássicos
Yaguarãboia
O coelho que fugiu da história
Florence Breton* e Rogério Manjate Fonte: Elaborado pelas autoras *Autores/as não negros/as
De modo geral, dentre os acervos dos/as autores/as negros/as encontrados, a maioria das obras era do escritor Machado de Assis, que apesar de não ser conhecido por grande parte dos profissionais da educação e do público em geral, foi um autor negro embranquecido pela cultura dominante. Diga-se de passagem, que o próprio autor omitiu ao revelar sua identidade para não contrariar a sociedade da época. Assim também, por meio das observações sobre o espaço físico, detectamos que as estruturas não favoreciam a participação dos estudantes como leitores, tampouco os professores. Nesse sentido, diante dos resultados encontrados, recai sobre a escola, em especial a biblioteca, a responsabilidade pedagógica de contribuir para uma educação formativa, bem como o ensino e a aprendizagem das diferentes culturas, apresentando
possibilidades,
variedades
literárias,
pesquisas,
análises,
questionamentos e conhecimentos de si e do outro, tendo como referencial as literaturas negras. Considerações finais
A implementação da Lei 10.639/2003 é uma vitória dos movimentos sociais, em especial do Movimento Negro, representando um avanço para a construção de uma sociedade plurirracial, multicultural e democrática, que provoca mudanças no currículo, nas práticas pedagógicas, nos
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materiais didáticos e em todos os níveis de educação. Quando aplicada de forma correta, possibilita a transformação do espaço escolar em um local de promoção de políticas antirracistas, rompendo com concepções eurocêntricas e adotando uma nova percepção sobre a população negra brasileira e o continente Africano. Contudo, percebemos os desafios de se implementar e efetivar essa lei. As alterações previstas devem abarcar as práticas pedagógicas, pois nota-se uma carência de informações sobre a temática na formação dos docentes atuantes na rede analisada. Logo, os cursos de formação continuada, como as conferências oferecidas pelo projeto, são de extrema importância para tal reparação e deve ser valorizada e promovidas, tanto pelos órgãos governamentais responsáveis quanto pela escola e seus(as) funcionários(as). Os livros didáticos de História representam o significativo avanço proposto pela Lei 10.639/2003, com a inserção de novos capítulos dedicados exclusivamente a temática Africana e Afro-brasileira, separadamente. Essa transformação, no entanto, não significa que conseguimos atender às demandas de um ensino atento à formação de cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial. Esse desafio ainda é percebido no material didático, assim como nas epistemologias das diversas áreas de conhecimento, que ainda não superaram o paradigma eurocêntrico em sua totalidade. A confecção do instrumento paradidático, realizado pelo grupo do projeto de extensão, foi pensado para sanar as faltas de material didático, por meio da criação de planos de aula pautados na interdisciplinaridade com a arte e literatura. Essa iniciativa surge devido à demanda apresentada pelos professores, que muitas vezes alegam não possuir tempo suficiente para este planejamento, por residirem longe da escola, ou pela dupla jornada de trabalho, visto a baixa remuneração da profissão.
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Outro fator importante se refere a aplicação da Lei 12.244, que visa o aumento do número de bibliotecas nas escolas, a ampliação e valorização de sua importância no processo de aprendizagem, pois, percebemos um distanciamento da lei com a realidade, sendo necessárias tanto reformas físicas como a contratação de bibliotecários(as) pelo órgão responsável. Ademais, no que tange aos acervos, foi notado um número reduzido de exemplares escritos por autores/as negros/as, o que tornou evidente a urgência de novas aquisições e um maior investindo nessa área, a fim de promover a diversidade. Por isso torna-se necessária a adesão de livros que tenham o protaganismo negro e sua cultura em foco, mas é indispensável que haja incentivo à leitura e ao uso da biblioteca escolar. Diante dos resultados encontrados, fica perceptível as dificuldades enfrentadas pelo corpo docente, pelas limitações dos livros didático e a escassez dos(as) autores(as) negros(as) nas bibliotecas escolares. Nesse sentido, foi criada uma página na rede social Facebook, “OBA - Observatórios Atlânticos”, e um perfil na rede social Instagram, “@obaufv”, com o intuito de divulgar as produções de professores(as), pesquisadores(as) e autores(as) sobre as temáticas relacionadas ao ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, com destaque para as obras literárias dos (as) autores negros (as), como fotos, biografias resumidas, trabalhos de circulação e repercussão, bem como poemas, músicas e livros. Por meio desta comunicação foram apresentadas sugestões pedagógicas e oferecido, aos professores, encontros com foco na formação inicial e continuada, promovidos pelo projeto de extensão na Universidade Federal de Viçosa - MG. Referências FONTENELE, Zilfran Varela; CAVALCANTE, Maria da Paz. Práticas docentes no ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Educação e Pesquisa, v. 46, 2020.
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